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Codinome Beija-Flor


O beija-flor é o único pássaro capaz de voar para trás. Excepcionalmente dotado com o mais forte grupo muscular em toda a natureza, é capaz de dar marcha-a-ré em pleno vôo. Uma maravilhosa família de aves, cujo estilo de vôo tem sido, infelizmente, copiado por nossas maiores empresas aéreas. O trágico andamento de nossa aviação, que se complica a cada dia que passa, é analisado agora, tendo por pano de fundo a comédia-bufa protagonizada pela Tam e Varig.

Annus Horribilus

Há pouco mais de um ano, em 6 de fevereiro de 2003, a Tam e a Varig anunciaram a assinatura de um Protocolo de Intenções que levaria à fusão das duas maiores empresas aéreas brasileiras. Começava aí uma das mais conturbadas fases da recente história de nossa aviação comercial.

O ano de 2002 transcorreu de forma terrível para a aviação nacional: o número de passageiros caiu brutalmente. Ano de eleição, com Lula prometendo ganhar, assustou as alas mais conservadoras do empresariado, que, desconfiadas, adiaram investimentos: o desemprego e a erosão de renda se fizeram sentir com toda força. O dólar bateu na casa dos R$ 3,80, inviabilizando o sonho das viagens internacionais e esvaziando sobretudo os jatos da Varig, empresa que domina quase 90% da oferta internacional.

Enquanto isso, a Tam recebia toda semana um novo jato, herança de uma grande encomenda feita nos anos pré-Alqaedianos. Chegavam sem parar ao Brasil, vindos direto da fábrica, uma reluzente frota de novíssimos A320, A319 e mais evidente ainda, cinco A330-200 que a empresa esperava utilizar na expansão de seus serviços internacionais. Frankfurt, Madrid, New York eram alguns dos destinos que a companhia do tapete vermelho pretendia operar. Porém, a Tam havia cortado quase todas estas rotas, sobretudo após a morte do Cmte. Rolim, em julho de 2001. Assim mesmo, a empresa ia recebendo os jatos e os deixava no solo, com baixíssimos níveis de utilização diária.

Na Varig, a situação era distinta, mas nem por isso mais confortável. Ao contrário, a companhia assistia uma rápida deterioração de suas já debilitadas condições financeiras. Da falta de crédito junto aos fornecedores de combustível, que exigiam pagamentos diários para encher os tanques dos Boeings da Varig, às cenas humilhantes como, por exemplo, ter de ver seus aviões sendo interditados e arrestados com passageiros a bordo, em aeroportos como Miami e Paris, a outrora inatingível Pioneira amargava sua mais profunda crise, justamente ao completar 3/4 de século de existência. Algo, definitivamente, precisava ser feito.

Depois de um rápido namoro, em 6 de fevereiro, Manuel Guedes e Daniel Martin, respectivamente presidentes da Varig e da TAM, reuniram a imprensa para anunciar que suas duas empresas iniciavam um noivado que, se tudo desse certo, terminaria com o casamento da Tam com a Varig antes do ano acabar. O que poderia ser, aparentemente, uma decisão lógica, começava sob um manto de dúvidas: muitos analistas, nós entre eles, lavantaram sérias dúvidas sobre as reais razões da fusão - e de sua viabilidade.

Começando com o pé esquerdo

Está aí, fundamentalmente, a razão pela qual a propalada fusão virou confusão. Ninguém, salvo alguns políticos de Brasília, desejava ver Varig e Tam morando sob o mesmo teto. O governo Lula, alertado para a gravidade da situação, sobretudo no caso da Varig, não queria arcar com o ônus político, para não dizer social, de ver os quase 17.000 trabalhadores da empresa no olho da rua.

Não nos enganamos: este sempre foi um casamento de interesses, que seria feito sem amor, simpatia ou harmonia entre os cônjuges. Interessava apenas a alguns poucos. Para a grande maioria, seja para os milhares de trabalhadores das duas empresas, para os passageiros, e sobretudo, para os contribuintes - alertados claramente pelas empresas e pelo próprio Governo Federal - que seriam justamente eles, os contribuintes, que teriam de pagar pelo casório, lua-e-mel e casa nova do casalzinho.

A festança seria bancada com dinheiro público, de uma forma ou de outra. Fosse através da conversão de dívidas em ações ou de empréstimos, rolagem ou perdão dessas dívidas ou quaisquer outros mecanismos contábeis, fiscais e financeiros, seria o público que no final arcaria com o grosso do capital a ser injetado na nova empresa.

Para a Varig, o casamento foi percebido como um velório, especialmente para os funcionários com mais tempo de casa, mais impregnados de amor à camisa e saudosos dos anos dourados da Pioneira. Para eles, a fusão com a Tam não era apenas desagradável mas sobretudo, humilhante, principalmente depois de anunciado que a Fundação Ruben Berta teria apenas 5% do capital da Nova Empresa Aérea, como era chamada então. Na época, várias manifestações de funcionários da Varig, contrários à fusão, pipocaram espontaneamente nos saguões dos aeroportos brasileiros, sob os gritos de ordem "Salvem a Varig."

Claro que as duas empresas trataram de vender ao público a idéia que a fusão seria "Boa para o Brasil". A questão não é apenas semântica: de fato, pode mesmo ser bom para o Brasil ter uma só grande e poderosa empresa aérea, forte, capaz de enfrentar a concorrência internacional. Isso ninguém discute. Agora, será que esta fusão, além de ser boa para o Brasil, seria boa para os Brasileiros? Este ano de 2003 já mostrou de forma clara e definitivamente que não. Afinal, ao invés de se fundirem, as duas empresas assinaram e colocaram em prática, sob o olhar cada vez mais suspeito do CADE, um acordo de code-share.

Aerobrás?

Se a fusão não decolou, ao menos as duas empresas conseguiram operar um amplo regime de vôos compartilhados (code-share), efetivamente dando uma trégua à competição que quase lhes custa couro. Onde antes havia oferta, competição, diferenciação, escolha, hoje há a desagradável experiência de nunca saber em que companhia se vai voar: vermelho ou azul, Airbus ou Boeing?

Se isso não é bom, se essa diluição de produto e imagem não interessa a quem se liga na aviação, será que este code-share estaria agradando a outros que não os diretores financeiros das duas empresas? Seria bom para as centenas de milhares de passageiros que estão inegavelmente pagando mais caro pelas passagens? Seria bom para os milhares de demitidos pelas duas empresas neste ano, incluindo-se aí os dois presidentes que assinaram o documento em 6 de fevereiro de 2003? Seria bom para os profissionais que ainda trabalham nas duas empresas, sabendo que na prática, não há muita concorrência entre elas, o que significa menores horizontes profissionais? Seria bom para os agentes de viagem, que têm menores poderes de negociação ao enfrentar o poder das duas empresas, que nos mercados principais de nossa aviação detêm mais de 80% da oferta? Seria bom para quem voa, perceber que o serviço de ambas as empresas decaiu, nivelado por baixo? Seria bom para os milhares de fornecedores e parceiros comerciais de ambas as empresas, assistir a esta concentração?

Claro que não. E um exemplo do que essa virtual "Aerobrás" provocou no mercado é constatar que durante o ano de 2003, o investimento publicitário de ambas foi reduzido drasticamente, reduzido aos níveis mais baixos em muitos anos. Praticamente as duas não anunciaram, não investiram na construção e manutenção de suas imagens, não buscaram criar uma imagem posiutiva do acordo. Agora começam a pagar o preço.

Os números não mentem: nos primeiros 10 meses de 2003, o acordo entre as empresas elevou em média as tarifas em 7,14%, um número que ganha ainda mais relevância se lembrarmos que no mesmo período o combustível de aviação, principal componente dos custos das empresas aéreas, teve queda de mais de 12%. Resume este triste quadro Claudio Considera, ex-diretor da Secretaria de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda: "A falta de concorrência só vem prejudicando o consumidor, pois o número de vôos foi reduzido, as passagens aumentaram." Considera afirma ainda, para não deixar margem a dúvidas: "Existe um cartel tácito no setor. As empresas não combinam preço, mas também não brigam entre sí."

Resultado do aumentode preços entre Varig e Tam? A Gol e a Vasp perceberam a oportunidade e, com menor competição e menor oferta, aumentaram elas também seus preços. Novamente, quem pagou o pato foi o passageiro.

Quem perdeu, quem ganhou

Não resta dúvidas que, por onde quer que se examine a questão, o balanço é negativo. Em especial para a Varig, que neste período demitiu muita gente e devolveu um grande número de aviões, sendo obrigada a cortar rotas, serviços, frequências.

Ela, que no começo de 2003 tinha 36% do mercado, caiu para o segundo lugar com 29,7%, atrás da Tam com 33,8% - números referentes a janeiro de 2004. Pior do que isso: com o encolhimento da frota da Varig, muitos vôos da empresa estão sendo feitos nos jatos vermelhos de sua parceira, que desta forma tem sido brindada com a possibilidade de mostrar seu produto e seu estilo (embora longe do velho e bom padrão exibido no período pré-fusão) para um número crescente de passageiros. Assim, a demanda da Varig, em um ano, caiu 11,3%, enquanto a procura pelos serviços da Tam aumentou em 10,9%.

É bom lembrar que, antes do code-share, a Tam enfrentava forte rejeição em vários mercados, sobretudo o gaúcho e o fluminense, que são "territórios variguianos" por excelência. Afetada pelo "Efeito Fokker" e por ser percebida em muitos mercados como uma empresa regional, novata , inexperiente, a Tam tinha dificuldade de crescer em muitas praças. Isto começou a mudar com o code-share: os passageiros, comprando um bilhete Varig, acabavam muitas vezez voando nos Airbus novinhos em folha da Tam, tripulados com seus jovens comissários, geralmente mais preocupados em agradar do que seus pares da Varig. Depois disso, os passageiros começaram a aceitar com menor rejeição os produtos e serviços da Tam.

Mas talvez o exemplo mais contundente desse vôo em marcha-a-ré foi o número de demissãos nas duas empresas. Os sindicatos do setor estimam que mais de 6.000 trabalhadores foram demitidos no período. Não deixa de ser irônico pensar que nem os presidentes escaparam : por discordar dos rumos que a empresa ia tomando, o presidente da Tam, Daniel Martin, pediu as contas em agosto de 2003.

Na Varig foi ainda pior: Manuel Guedes também saiu, não resistindo ao flak interno. Neste ano conturbado, a empresa teve 4 presidentes, um triste recorde em seus 75 anos de vida. A Pioneira, que ficava décadas sob um mesmo comando, começou a contar as semanas - ou dias - em que seus executivos ocupavam a cadeira de chefe supremo. A piada da vez era perguntar quem "está" presidente da Varig, assim, no transitivo mesmo.

Sobrou também para a Vasp, que nada tem a comemorar: a companhia, que até ser privatizada era a segunda maior do Brasil, está fazendo o papel de marisco, prensada entre as ondas e as pedras. Com um modelo de negócios tão moderno quanto seus 737-200, sua participação despencou para 11,5% do mercado, com retração de demanda no último ano de 6,2%. A empresa somente sobrevive pois praticamente não tem custos financeiros elevados, pois sua frota, amortizada há tempos, é praticamente toda própria, com exceção de 6 aeronaves arrendadas. Com números desastrosos como estes, eu fico pensando que a Vasp é hoje, efetivamente, uma empresa privada: privada de decisões corajosas, privada de investimentos, privada de visão. Infelizmente, uma empresa que foi parar na privada.

E com sempre, alguém sai ganhando quando todos estão perdendo. Se as tradicionais empresas do setor perderam, a Gol acabou saindo ganhando . A companhia aumentou sua oferta, a demanda cresceu em um ano nada menos que 49% e assim, os Boeings laranja abocanharam 23% do mercado doméstico. O número é assombroso, principalmente se pensarmos que com apenas 3 anos de vida, a Gol tem hoje quase 80% do tamanho da Varig. Com 79% de ocupação, um índice internacionalmente muito bom - e muito acima da média brasileira, que pulou de 57% em janeiro de 2003 para 67% em 2004 - a Gol ainda pode se dar ao luxo de aumentar seus preços, pois aproveitou o fato de que a competição fez o mesmo. Resultado: Aviões mais cheios, ocupados por passageiros que pagam mais pelas passagens. Sopa no mel.

Varig: o futuro a Sepulveda pertence

O que esperar para 2004? A Tam e a Varig solicitaram ao CADE a prorrogação do acordo de code-share por dois anos, pois já não escondem de ninguém que a fusão foi para o espaço. O órgão de defesa do consumidor torce o nariz para a decisão, mas na prática pouco faz. Se demorou dois anos para julgar a compra da chocolates Garoto pela Nestlé (e só agora condena o próprio negócio), imagina o tempo que vai levar para julgar o pantanoso terreno do acordo de code-share entre Varig e Tam. O consumidor fica com a pergunta e com a sua cada vez mais cara passagem na mão: cadê o CADE?

Enquanto empurram com a barriga, as duas maiores empresas do setor parecem se acomodar e aparentemente não cuidam de resolver de uma vez seus problemas internos, seus vícios corporativos/empresariais que são, no fundo, a razão pelas quais as duas se abraçaram neste Baile dos Desesperados. Iludidas por números operacionais positivos, obtidos com a racionalização conseguida através dos vôos em code-share, as empresas perderam mais um ano e não se aplicaram para resolver seus problemas. Nem para enfrentar seu verdadeiro e perigoso inimigo comum, a Gol.

No caso da Varig, ninguém lê uma linha na imprensa que fale sobre modernização, racionalização, aplicação de métodos, táticas, programas modernizadores, produtos inovadores. Ninguém discute mais o feudal sistema de administração da empresa, co-dirigida entre seus executivos e a pachorrenta Fundação Ruben Berta. Qualquer manicaca sabe o perigo que representa, na aviação como nos negócios, o "duplo comando": alguém tem que mandar na cabine de comando, e só pode ser um só. Este fator isolado é o maior responsável pelo estado em que se encontra a Varig. Pode colocar Sua Santidade como presidente da Gaúcha; a Fundação Ruben Berta é quem vai querer ensiná-lo a rezar o Pai Nosso.

Tam: casa ou compra bicicleta?

No caso da Tam, a busca incessante pelo crescimento e pela excelência absoluta nos serviços cobrou seu preço. Com uma estrutura de empresa grande, investindo muitos milhões num parque de manutenção de primeiro mundo, numa frota moderníssima, em produtos e progamas inovadores, a empresa sob o comando do saudoso comandante Rolim, investiu para ser a maior e melhor companhia aérea do Brasil.

Rolim morreu em julho de 2001 num trágico acidente, justamente quando a Tam passava a varig no ranking nacional pela primeira vez. Pouco menos de dois meses depois, a aviação como ele conheceu morreria também, soterrada para sempre sob os escombros dos atentados do dia 11 de Setembro. Naquele dia, fez-se claro que mudanças já se faziam necessárias há muito tempo. Mas foi justamente o horrendo atentado, usando quatro aviões comerciais como instrumentos de destruição, que esfregou na cara dos executivos do setor a dura realidade de que seus velhos paradigmas, sob os quais Rolim tomava as suas decisões, já não valiam mais.

Desde então, praticamente todas as empresas aéreas "tradicionais" perderam espaço, enfrentam prejuízos assombrosos, ou mesmo fecharam suas portas. O público deu o recado: não queremos mais tapetes vermelhos, pianos nas salas Vip, insossas refeições nas bandejinhas: a gente troca tudo isso por tarifas mais baratinhas. O resultado? As empresas aéreas low-cost/low-fare explodiram e continuam em ascenção, justamente um modelo de negócios diametralmente oposto ao "Magic Red Carpet" estampado nos Airbus da Tam. A julgar pelas carteiras vazias dos passageiros, a Tam deveria pensar em mudar a mensagem para "The Cheapest Flying Carpet."

Se a empresa optar por este caminho, vai precisar de muita coragem e competência para se reinventar, e pelo que já investiu, dificilmente conseguirá. Ela vai ter de suar para competir com empresas mais novas, enxutas e leves.

Resumo da ópera-bufa

A Varig ainda inchada, ineficiente, com seu modelo de gestão arcaico, atolada em dívidas. A Tam tentando sair do chão puxando os próprios cabelos, voando na contra-mão do mercado. A Vasp definhando, desaparecendo com sua frota de pterodáctilos. Um governo federal inepto, perdido, omisso, tecnicamente despreparado para lidar com o setor.

O acordo da Tam com a Varig fez um ano e não há absolutamente nada a comemorar. A aviação comercial brasileira em 2003 conseguiu um feito aerodinamicamente quase impossível e está voando para trás. Codinome Beija-Flor.

Gianfranco Beting

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