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Cartering: um mundo fascinante
Nenhuma indústria que movimenta US$ 14 bilhões ao ano é,
digamos, café pequeno. Pois é exatamente este o tamanho
do mercado do conjunto de atividades responsáveis pelo
planejamento e execução das refeições servidas à bordo
de companhias aéreas, conhecido no meio aeronáutico como
catering. vamos abrir este cardápio agora para você,
leitor do jetsite. Bom apetite!
Restaurantes alados
Desde 7 de outubro de 1919, quando um Fokker da KLM
decolou de Londres para Amsterdam, o mundo da aviação
entrou na era dos vôos regulares de passageiros e na era
do catering. Muita coisa mudou desde os simplórios
sanduíches de carne frios acompanhados de frutas, o
cardápio servido aos heróicos passageiros que naquele
dia atravessaram o Canal da Mancha, aos mais de 42.000
diferentes ítens de catering embarcados regularmente em
cada vôo de longa duração de um Boeing 747-400.
Nada menos que US$ 14 bilhões são investidos na
alimentação de passageiros a cada ano. Deste total, Ásia
e Pacífico gastam por ano 4.9 bilhões, a Europa 4.2
bilhões, a América do Norte 3.6 bilhões, a América
Latina US$ 400 milhões e o restante do mundo, US$ 900
milhões. Nestes valores incluem-se os gastos com bebidas
e comidas servidas à bordo e em terra, nas salas de
embarque.
Até os anos 50, voar era para um segmento insignificante
da sociedade. Apenas os muito ricos podiam pagar pelos
bilhetes. Havia cerimônia, pois voar já era um programa
em sí. As relações eram pautadas por uma maior
formalidade tanto dos passageiros para tripulantes como
das "aeromoças e aeromoços" para seus passageiros,
integrantes de uma elite que podia pagar pelas
passagens, que não raro, eram de classe única, ou seja,
de Primeira Classe.
Até o final da Segunda Guerra, os aviões voavam trechos
de no máximo cinco, seis horas. Sua autonomia limitada,
suas condições operacionais incipientes não permitiam
maior atenção ao serviço de bordo. Até porque, por
voarem baixo enfrentavam nuvens carregadas e enjôos eram
frequentes. E como se sabe, a fome é a primeira a
desaparecer numa situação destas. Os mais antigos se
lembram do odor de desinfetante usado para tentar apagar
das cabines aquele perfume característico. Era comum
subir numa aeronave e já ficar enjoado só de sentí-lo.
Após o término do conflito, os fabricantes de aeronaves
começaram a desenvolver os grandes e clássicos
quadrimotores com alcance transoceânico. A invenção do
radar e a instalação de pontos de navegação fixos,
permitiram o início de vôos noturnos com maior
frequência, dando origem à maior utilização das
aeronaves, em escala global.
Os Constellation, DC-4, DC-6, Stratocruiser e depois os
DC-7 enfrentavam longos trechos de mais de 12 horas de
duração. Em etapas assim, duas coisas aconteciam: sono e
fome. A primeira metade da equação foi resolvida
aumentando o conforto: as cadeiras viraram poltronas, as
poltronas viraram camas. A segunda foi um pouco mais
complexa: as caixinhas de lanche frio, até então o
máximo em refeições a bordo, começaram a ser
substituídas por refeições mais elaboradas, aquecidas
nas galleys, como são conhecidas as cozinhas à bordo dos
aviões.
É desta época também que começa a haver competição entre
as empresas. Até a Guerra, não eram muitas as companhias
aéreas disputando os mesmos mercados. Ao contrário,
antes do conflito os governos protegiam as empresas,
designando-as com exclusividade para determinadas linhas
e áreas de operação. Como sabemos, o ser humano só
progride quando motivado, seguindo a lei do mínimo
esforço.
Prato principal: a Era de Ouro
Com o surgimento da competição entre as empresas, os
serviços foram percebidos como diferenciais pelos
diretores de operação ou mesmo pelos presidentes das
companhias aéreas (lembre-se: ainda não havia sido
"inventado" o marketing em escala planetária). Os
executivos trataram então de aprimorar cabines e
serviços, buscando meios para superar a concorrência.
Afinal, os aviões eram mais ou menos os mesmos, voando
para a empresa A ou B com a mesma velocidade, alcance e
altitude. Portanto, para se diferenciar, era fundamental
caprichar no serviço de bordo. O mundo da aviação
entraria na era dourada do transporte, um tempo que unia
elegância, glamour, educação... e grandes refeições.
Foi nestes grandes quadrimotores à pistão, com suas
múltiplas escalas em longos vôos intercontinentais, que
o mundo conheceu a Era De Ouro da classe e da atenção ao
passageiro. O padrão destes vôos hoje nos fariam corar
de inveja, enquanto mastigamos nossas barrinhas de
cereias. É claro que naqueles tempos, palavras como "fitness",
triglicérides, radicais livres e outras vicissitudes do
mundo moderno pareciam ficção científica.
Comia-se com indulgência: sem dó, sem culpa, com prazer.
Ou como se o mundo fosse acabar na hora seguinte, o que,
diga-se de passagem, não era assim tão raro sob as
muitas vezes precárias condições de segurança dos vôos
de então.
Estávamos a anos-luz da Geração Saúde, gente que acha
graça em sobreviver às custas de uma ração básica
composta por isotônicos, peito de frango cozido e
endívias. Já disseram: "Em duas semanas de regime,
consegui perder 14 dias". Ou ainda: "Fazer regime é a
arte de prolongar a vida tornando-a insuportável". O que
talvez explique a tendência de algumas empresas aéreas
nos dias de hoje, que pegando uma providencial carona
neste modismo, condenem sem remorsos seus passageiros a
morrerem de inanição.
Acompanhamentos: uma grande equipe
Por trás da prosaica bandejinha, há um batalhão de
profissionais envolvidos. O universo do catering é
gigantesco e complexo, e começa pelo fato de que a
bandeja tem de ser servida pelo comissário, parte
fundamental do processo.
Quando a United Airlines contratou suas primeiras
aeromoças, colocou um anúncio no jornal recrutando
enfermeiras, que acabaram sendo de fato as primeiras
profissionais a trabalhar nas cabines. No pós-Guerra, a
coisa já era outra. Escolhidas por seu charme, elegância
e desenvoltura, estas profissionais deveriam saber mais
do que simplesmente aplicar band-aids.
Escolhidas com rigor, as comissárias (e comissários)
eram pessoas de classe, com vontade de conhecer o mundo,
de viajar. Via de regra, eram afáveis no trato, falavam
vários idiomas e se portavam com elegância, atributos
fundamentais para lidar com o público, uma tarefa sempre
desgastante. Estas Embaixadoras do Ar protagonizariam
nas décadas seguintes (até o final dos anos 70) a fase
áurea dos serviços de bordo.
Tudo começaria a mudar com a chegada do Boeing 747, em
1970. Até então, mesmo com os jatos de primeira geração,
em cada vôo havia no máximo 150 passageiros em média,
mas comumente menos de 100. Com menos gente pra servir,
é natural que os comissários pudessem prestar um serviço
mais pessoal, atencioso. Além disso, a Era dos Jumbos
aumentou dramaticamente o número de passageiros na
classe econômica ou turista, que recebem refeições mais
simples.
Para os comissários, isso aumentou a carga de trabalho e
diminuiu o tempo de dedicação para cada passageiro. Veja
a média de comissários por passageiro nas companhias
aéreas: 1 para 3 na Primeira Classe, 1 para 8 na Classe
Executiva e um para 40 na Falta de Classe Econômica. Em
resumo, tente cuidar de 450 bocas famintas, inovação
trazida com o 747: não dá pra fazer milagre.
Os bastidores
Os comissários são os responsáveis pela preparação e
entrega do serviço em sua parte final: montar os pratos
e serví-los aos passageiros. Mas uma refeição à bordo de
uma aeronave começa horas antes, no solo, nas cozinhas
das companhias aéreas ou das empresas de catering,
especializadas em preparar a comida que será servida nos
vôos.
Não raro, estas também prestam serviços de comissaria,
isto é, cuidam da colocação e da retirada nas aeronaves
das refeições e ítens dos serviços de bordo tais como
bebidas, bandejas, copos, talheres, carrinhos, gelo,
água e o que mais for necessário ao serviço. Hoje em
dia, algumas empresas aéreas tem departamentos inteiros
que cuidam disso. A maioria porém, terceiriza estas
atividades para empresas especializadas, como por
exemplo, a LSG Sky Chefs, que é maior do mundo e faz
parte do grupo Lufthansa.
Hoje em dia, os bons profissionais de cabine,
trabalhando nas melhores empresas aéreas, estudam
enologia, gastronomia e tem cursos dedicados de
apresentação de pratos e bebidas. Ou seja, sabem
explicar e diferenciar o que é servido nos pratos e
copos nas cabines. Conhecem vinho, sabem serví-lo, tirar
eventuais dúvidas e fazer recomendações aos passageiros.
Muitos fazem cursos de barman, para preparar coquetéis a
bordo.
O mundo mudou
Os ruidosos motores radiais dos Connies e Douglas eram
abafados com bolinhas de algodão. O cansaço era amparado
por poltronas confortáveis ou até mesmo camas. A fome e
a sede eram mitigadas por refeições suntuosas,
verdadeiros rituais bacantes com mais de 5 pratos e de
até três horas de duração. Vinhos de classe, caviar,
champagne e uma infinidade de drinks e coquetéis eram a
norma na década de 50 e 60.
A aviação era assim. Hoje em dia, cada vez mais, isso é
coisa do passado. O passageiro moderno chega apressado
ao aeroporto, enfiado num terno e gravata, tagarelando
ao celular e corre para pegar o avião em mais uma viagem
a negócios. Repare: antes era "andar de avião", hoje é
"pegar o avião", como se ele fosse escapar.
Ou então, trajando jogging (ou bermudão) e tênis, vai o
mais descontraído e confortável possível, já antecipando
as merecidas férias. A trabalho ou a passeio, o estilo
pouco importa: o fato é que voar hoje em dia é algo
natural, corriqueiro, sem nenhum glamour.
Fazendo mesmo uma crítica de costumes, nota-se que a
elegância e o apuro dos passageiros foi mesmo para o
espaço. O fenômeno ocorre também nas empresas aéreas.
Muitas vezes, quem antes era tratado com salamaleques,
hoje é esnobado ou então apontado de forma pouco
carinhosa como sendo "aquele chato na poltrona 37J" ou
"aquela perua lá na dois-alfa". Assim, como se fossem
acidentes geográficos na paisagem da cabine.
Num planeta em que Tom Jobim vende 30.000 CDs e duplas
sertanejas vendem 30 milhões de discos, não poderia ser
diferente. É claro que há exceções. Mas o fato é que,
com a crise na aviação em escala global, um dos
principais ítens abatidos no que se costuma chamar de
"serviço de bordo" foi justamente a qualidade,
quantidade e classe na apresentação das refeições.
No mais das vezes, as refeições hoje em dia são tratadas
pela maioria das companhias aéreas como ratazanas
prenhas: a pauladas, eliminadas ao primeiro sinal de
crise ou na primeira reunião de budget, o que vier
primeiro.
Isso ficou ainda mais claro depois que surgiram as
empresas low-cost/low-fare, que em troca de cobrar mais
baratinho pelas passagens, reduzem os lanches a bordo ao
básico ou simplesmente, a um saquinho de amendoins. E
papa-tango, saudações. Nada errado nesse caso, afinal, o
passageiro é avisado de antemão. Duro mesmo é quando
você embarca num vôo de uma empresa dita (e paga)
comofull service e recebe um sanduicheco de lembrança.
Aí a fraude está configurada, especialmente para pessoas
estranhas como eu, que sentem necessidade física de
almoçar e jantar todos os dias.
Para este grupo de terráqueos ao qual pertenço, voar
hoje em dia pode parecer um sacrifício, e muitas vezes é
mesmo. Tomemos os Estados Unidos como exemplo. Em alguns
vôos longos, transcontinentais, de mais de 5 horas de
duração, algumas companhias aéreas deram para abolir
completamente o serviço de bordo. Você decola as 9 horas
da manhã e aterrissa do outro lado do país depois das
três da tarde, com apenas uma coca-cola no bucho. É,
literalmente, dose.
A vingança não tardou. De tanto enfrentar diabéticos
passando mal pelo jejum forçado à crises de choro,
mal-humor e raiva, algumas empresas aéreas perceberam a
mancada e voltaram atrás - mas cobrando por isso. Hoje,
companhias como a America West cobram até 12 dólares por
um café da manhã ou um lanchinho. A tendência se
espalha: quer comer, vai pagar. Até a Swiss, sucessora
da Swissair afirma que irá cobrar pelas refeições. É a
pá de cal na cordialidade e da elegância, que quem
diria, form parar no Irajá.
Fazendo o catering certo
Catering já foi, nos seus áureos tempos, uma área de
atuação direta do presidente da empresa aérea. A ordem,
por décadas, foi de se buscar a excelência, de
impressionar o passageiro e agarrá-lo pelo estômago. Não
mais.
Por razões de ordem prática e econômica, o bom catering
hoje é o que ouve as preferências dos passageiros e tem
capacidade de encontrar mecanismos para satisfazer
desejos e necessidades do público ao menor custo
possível. Se levarmos em consideranção que uma refeição
internacional típica, de classe econômica, custa de US$
5,00 a US$ 8,00 às companhias aéreas e lembrarmos que
muitas delas servem mais de 150 milhões de refeições por
ano, faça os cálculos e você logo entenderá porque o
sanduíche é cada vez menor. Outro ponto importante: para
evitar desperdícios, é fundamental trabalhar com uma
estimativa real de ocupação da aeronave a cada vôo.
Afinal, leis internacionais obrigam as companhias aéreas
a jogar fora tudo o que foi embarcado, seja consumido ou
não, reaproveitável ou não.
Seja como for, empresas sérias tentam fazer o melhor com
orçamentos cada vez menores. Para saber o que querem e
exigem os passageiros, os departamentos de marketing das
empresas trabalham para dar ouvidos ao consumidor e
entregar o que ele quer. Com base nestes dados, os
cardápios são normalmente planejados com seis meses de
antecedência e trocados em ciclos que variam de classe
para classe e de empresa para empresa mas que, via de
regra, mudam a cada duas semanas. Assim, o viajante
frequente terá menores chances de ter de repetir o
prato.
Na hora de desenhar o que será servido, vários fatores
pesam na escolha de pratos e acompanhamentos. Os
principais são: considerar o horário de partida e
chegada, duração do vôo, regulamentos internacionais de
saúde, questões étnicas e religiosas, classe de serviço,
orçamento da empresa, sazonalidade e preço dos
ingredientes, tamanho e equipamentos disponíveis nas
galleys, número de comissários necessários para servir a
refeição, questões de higiene, normas de segurança,
capacidade de requentamento de um prato, capacidade de
tolerância às baixas umidades nas cabines... a lista é
enorme. Assim, começamos a montar um quebra-cabeça que
mostra o quão complexa é a área.
Ainda sob o ponto de vista operacional, as companhias
precisam pensar no carregamento e descarregamento do
serviços nos aeroportos e nas aeronaves, no fluxo de
apresentação das refeições à bordo e no controle da
saída e retorno de peças reutilizáveis tais como copos e
louças. Todos estes aspectos passam por uma questão
básica em catering: a comida é produzida em terra e
consumida no ar. Qustões de higiene, conservação, e
aparência ganham uma importância que o passageiro comum
não percebe. Sabe lá o que é uma salada com mais de 15
horas de vida? E um ovo frito na noite anterior? Uma
carne assada com 14 horas de forno? Pois é, tudo isso
tem que ser muito bem pensado antes de chegar à sua
bandejinha. Afinal, alimentos perfeitamente comestíveis
e bem apresentados podem não resistir às diferenças de
temperatura e pressão das cabines. E dependendo da
classe onde o passageiro está, o serviço muda muito.
Tomemos como padrão de comparação, serviços típicos
intercontinentais.
First Class
Tradicionalmente, serviços de Primeira Classe dão grande
ênfase à personalização. É o passageiro quem decide
pelos pratos, seus acompanhamentos, e dependendo da
receita, o ponto de cocção de determinados ítens, como
por exemplo, carnes. Os pratos não vêm montados da
galley em bandejas, como ocorre nas outras classes. Eles
vêm em carrinhos ou trolleys e são servidos de
travessas, montados na frente do passageiro.
Ítens como caviar, frutos do mar como lagostas e
camarões, salmões e outros peixes defumados são
apresentados como entradas, seguidos de dois pratos
principais, normalmente uma massa ou peixe e depois
carnes vermelhas. Há várias opções em todas as fases.
Depois de retirado o prato principal, tábuas com queijos
e pães, frutas e finalmente doces e chocolates fecham a
refeição. As bebidas são escolhidas em cartas bem-feitas
e bem impressas, com apresentações gráficas caras e
elaboradas. Nas boas empresas do ramo, trabalha-se com
80% a 100% de sobreposição, ou seja se todos os
passageiros pedirem os mesmos pratos, estes nunca
faltarão.
Classe Executiva
Normalmente os passageiros escolhem sua refeição em
cardápios apresentados no início do vôo. Não há opções
de entradas mas existem opções de pratos principais, de
três a quatro sendo a norma. Há 60% de sobreposição, ou
seja: você tem boas chances de encontrar disponível a
sua preferência de prato principal. Mas a grande
diferença é na apresentação: os pratos chegam à mesinha
montados, em quantidades previamente determinadas, ainda
no solo. Raramente as empresas fazem o "mise-en-place"
na frente do passageiro.
Depois dos pratos principais, frutas e queijos,
sobremesas e licores fecham a refeição. Embora haja uma
bandeja, os pratos são colocados e retirados desta
bandeja, um de cada vez. A bandeja serve mesmo para
acomodar pratos, talheres e copos. Em relação à Primeira
Classe, uma seleção mais modesta de bebidas, em
variedade e qualidade, são servidas graciosamente.
Classe Econômica
Aqui, o grande número de passageiros implica num serviço
padronizado, sem muitas chances de personalização. No
máximo, uma opção de prato principal - e olhe lá.
Bebidas, normalmente domésticas, são oferecidas uma ou
duas vezes. E, de uns tempos para cá, algumas empresas
cobram até mesmo pelas cervejas. Tudo vem montado na
famosa bandejinha, que inclui a refeição completa:
entrada, saladinha, prato principal e sobremesa. A
sobreposição não existe: apenas uma reserva técnica de 5
a 10% a mais na quantidade de refeições em relação ao
número de passageiros embarcados.
Claro que estes são os parâmetros básicos da indústria.
Exceções, boas e más, acontecem. A Singapore Airlines
serve champagne na classe econômica - de graça. E nas
piores empresas aéreas, não há opções de pratos
principais.
Mas, no final de contas, quão importante são as
refeições à bordo? Todos sabem que sempre houve um
número bastante significativo de empresas aéreas que
venderam justamente isto, usando comidas e bebidas para
vender passagens. Na prática, porém, o catering como
fator de decisão por uma determinada empresa aérea tem
uma capacidade cada vez mais limitada.
Conveniência, preço e segurança ainda ocupam os
principais critérios de escolha. E, depois que as
low-cost / low-fare aboliram refeições a bordo, em
mercados mais maduros como os Estados Unidos, alguns
passageiros simplesmente esqueceram que poderiam comer à
bordo.
No Brasil, a resistência a eliminar refeições ainda é
maior. Apesar do sucesso da Gol, não há passageiro que
não saia satisfeito de um vôo onde lhe oferecem uma
refeição saborosa e bem apresentada. Afinal, é durante a
hora da refeição que o passageiro tem mais tempo de
prestar atenção na companhia e nos seus serviços...
À la carte: escolha sua empresa favorita
Perdoe-me o trocadilho, mas acho este um tema de dar
água na boca. Para mim, tão fascinante quanto a história
das companhias aéreas e de seus aviões, é estudar a
história de seus serviços, especialmente o histórico das
refeições servidas a bordo. Estudando o tema com mais
rigor, a gente percebe o DNA, o "pedigrée" de uma
empresa aérea - e o seu sucesso no mercado - ao
travarmos contato com suas tradições eno-gastronômicas.
Com a ajuda do arquivo da revista Flap Internacional a
ilustrar nossa viagem, você vai ficar sabendo o que cada
empresa aérea fez (ou deixou de fazer )nas últimas
décadas.
Varig - Construindo sua reputação com copos e talheres
A Varig foi considerada até os anos 80 como uma das
melhores empresas aéreas do mundo, e deve esta imagem de
excelência não apenas à esmerada e cuidadosa manutenção,
segurança e eficiência de suas operações. Deve muito de
seu prestígio à sábia decisão de seu mais famoso
presidente, Ruben Berta, de buscar se diferenciar e
competir contra poderosos concorrentes prestando um
serviço impecável. Podemos dizer que a fase áurea da
companhia coincide com a inauguração de seus vôos para
New York, em 2 de agosto de 1955, utilizando os Super
Constellation.
Berta sabia que tinha pela proa a formidável Pan Am. A
então modesta empresa brasileira teria de se superar
para poder competir. Então Berta contratou no Rio de
Janeiro o Barão austríaco Max Von Stuckart, que
comandava um dos melhores restaurantes da cidade, o
lendário Vogue. Berta foi direto: "Faça algo de que
possamos nos orgulhar".
Stuckart, na melhor tradição de classe e sofisticação
austro-húngara, não fez por menos: Em breve as galleys
dos Connies acomodavam iguarias como lagostas ao
Thermidor, faisões, omeletes aux fines hérbes (feitas na
hora), latas de caviar. Grandes vinhos fluíam nas
cabines com a mesma desenvoltura que os motores do
Constellation queimavam óleo lá fora. Eram vôos de mais
de 26 horas de duração desde a decolagem em Porto Alegre
até o Pouso em Idlewild, New York, com escalas em São
Paulo, Rio, Belém, Port of Spain e Ciudad Trujillo. E
como etalhe, as limitadas galleys dos Super
Constellation obrigavam as tripulações a lavar, em cada
escala, todos os copos, taças, pratos e talheres de
prata usados no serviços, uma carga de trabalho hoje
impensável.
A Varig pagou o preço e colheu os resultados. De novata,
passou a referência internacional em serviço de bordo.
Mesmo competindo contra os jatos da Pan Am, a Varig
cravava seu nome no panteão das grandes empresas aéreas.
O padrão foi naturalmente estendido aos outros serviços
internacionais da companhia, sobretudo após adquirir a
Real e herdar as rotas da Panair. O luxo destes vôos
agora era usado como diferencial nos DC-8, Convair 990 e
707 intercontinentais e nos Constellation, DC-6,
Caravelles e Electras usados nas rotas-tronco domésticas
e intra-sulamericanas.
Eu mesmo tive a sorte de experimentar a classe da Varig
em outros tempos. Por exemplo, em 12 de fevereiro de
1987, voei para Paris na First Class de um DC-10-30.
Íamos todos a convite da Airbus para o roll-out do A320
em Toulouse. A bordo estavam vários diretores da Varig,
entre eles Hélio Smidt e Rubel Thomas, número um e dois
na hierarquia da empresa. Voava pela primeira vez na
First Class da Varig e tinha grande expectativa em
relação ao tão famoso serviço. Decolamos do Galeão no
RG766, operado naquela noite pelo PP-VMW. O que eu vi
nas horas seguintes foi simplesmente fabuloso: latas de
caviar Oscietra, lagostas, cascatas de camarões-rosa
abriam o ragabofe opíparo. Tentando parecer o mais cool
possível, vibrava internamente com o luxo e a classe da
Pioneira.
Omar Fontana, sentado ao meu lado, observava de rabo de
olho minha cara de bobo. Depois de vários pratos, surgiu
da galley um comissário empurrando um carrinho, trazendo
um verdadeiro churrasco gaúcho, e pasme: no espeto. O
francês na poltrona atrás de mim, quando viu a enorme
peça de carne, berrou: "u-lá-lá, sacre-bleu!" Perguntei
ao Cmte. Fontana, depois de finda a refeição, se haveria
algo de especial por se tratar de um vôo com diretores
da empresa a bordo. Ele me respondeu com a experiência
de dezenas de vôos na First da Varig: "Tudo normal, é
sempre assim".
Os anos se passaram e o serviço da Varig, como o de
muitas outras empresas, perdeu parte do seu brilho. Mas
não é exagero dizer que a empresa gaúcha construiu sua
reputação com querosene, champagne e caviar.
Transbrasil: feijão maravilha
Omar Fontana, a despeito de reconhecer a excelência do
serviço da Varig, discordava da Pioneira e dizia a quem
quisesse ouvir: "Avião não é restaurante!" Neste ponto
discordávamos. Dependendo do vôo, da classe de serviço e
do horário de partida, avião tem de ser restaurante sim,
e dos bons. Foi o que a própria Transbrasil fez,
sobretudo em dois momentos importantes de sua história.
O primeiro em 1970, com a chegada dos coloridos BAC
One-Eleven, que Fontana apelidou de "Jatão".
Além das cores vibrantes, por fora e por dentro, nos
uniformes e nas poltronas, o marketing da empresa teve
uma fase colorida. Nesta época, a empresa mudava sua
razão social e deixava de se chamar Sadia Transportes
Aéreos e passava à sua designação definitiva. Para
festejar, Omar Fontana mandou criar um serviço de bordo
tipicamente brasileiro. Anúncios de revista promoviam
sem meias palavras, em letras cumbucais: Feijoada a
bordo.
Todas as quartas e sábados, naturalmente, os Jatões
decolavam com suas galleys exalando o inconfundível
aroma das partes porcinas (by Sadia, evidentemente)
boiando no grosso caldo do feijão preto. Detalhe: com
caipirinha para companhar. Foi um sucesso.
Em tempos mais recentes, a empresa de Omar Fontana criou
um serviço esmerado, quando iniciou vôos diários e
diurnos para New York. A partir de outubro de 1995, o
TR770/771 era um vôo que decolava de Guarulhos às 12:00
e pousava em JFK nove horas depois. O seu horário de
operação pedia refeições mais elaboradas, e foi
exatamente isso que a Transbrasil fez. Sucesso de
crítica, os cardápios apresentavam 4 opções de prato
principal no almoço, sendo dois de inspiração regional,
tipicamente brasileiros. A apresentação gráfica dos
materiais à bordo, entre eles os cardápios e guias de
entretenimento, foi premiada internacionalmente.
Air France: expectativas correspondidas
O povo que inventou palavras e expresões como charme,
savoir- vivre e savoir-faire não poderia deixar de ter
uma companhia aérea de classe. E sempre foi assim com a
Air France. É desnecessário falar da categoria dos
vinhos, das receitas servidas, da qaulidade das louças
de Limoges... e dos pratos da nouvelle cuisine, isso sem
falar naqueles de receitas mais tradicionais. Falam alto
também as tradições aeronáuticas da empresa, cujas
origens remontam aos anos de Mermoz e da L`Aeropostale,
usadas como temas nas cabines, cardápios, louças e
toalhas de linho. E, ah, o champagne é muito bom.
British Airways: to Fly, to Serve
Franceses adoram esta piada: os britânicos são o povo
mais perverso do mundo, pois assassinam os animais duas
vezes: quando lhes tiram a vida e depois, quando lhes
colocam numa panela. Discordo. A Velha Albion pode não
ser o berço de grande invenções culinárias além dos
"fish and chips" e tortas de rins, mas suas empresas
aéreas sabem oferecer um padrão de serviços impecável.
Das poltronas-cama à cardápios excepcionalmente bem
feitos e requintados, voar com a British sob a
administração Sir Colin Marshall (depois de 1985) é um
prazer. Vinhos soberbos, pratos clássicos britânicos e
aquela educação ímpar fazem uma refeição na BA ser mesmo
memorável. O slogan da empresa sob a administração
Marshall já diz tudo.
Alitalia: Dolce Far Niente a 13,000 metros
O mesmo raciocíno usado para a Air France vale para a
Alitália. Quem inventou "il dolce far niente" só poderia
mesmo prestar um ótimo serviço de bordo, especialmente
na classe Magnífica, a executiva da empresa. Os jatos
que chegam ao Brasil trazem este padrão, que alia
receitas saborosas, vinhos excelentes e comissárias
usando luvas de couro, um toque sutil e elegantérrimo. E
La Nave Vá.
Swissair: foi bom enquanto durou
A Swissair era uma das minhas preferidas. Suas equipes,
naturalmente poliglotas, eram o máximo em simpatia e
qualidade de serviço. Os chocolatinhos Cailler
distribuídos à bordo durante o embarque descontraíam
todo mundo. Os sistemas de entretenimento, as
confortáveis poltronas nos MD-11 eram soberbas. Mas o
que destacava a companhia era a qualidade excepcional
das refeições, a começar pelo salmão Balik servido na
primeira classe, uma iguaria inesquecível. Aliás, uma
das melhores coisas que comi na vida não foi em terra:
foi na primeira classe da empresa. Uma lasagna de
cogumelos frescos que um dia reportarei aos meus netos.
Ela se foi e deixou muita saudade, deixando toda esta
tradição para a Swiss carregar.
Virgin Atlantic: Cool Britannia
Outra que inovou em tudo, a Virgin é a empresa que tem a
imagem e o produto mais moderno nos céus. Sucesso de
público e crítica, com 97% de fidelidade em sua Classe
Executiva, a Upper Class (uma primeira classse
disfarçada), a Virgin dá shows de serviço de bordo:
cortesia, educação, profisionalismo, modernidade. Range
Rovers te pegam e te levam ao aeroporto. Salas VIP com
sauna, lareira e mesas de pinball. Massagistas, sofás e
bares a bordo: está tudo lá.
Meu nome é JAL
Como toda boa empresa asiática que se preza, a JAL é
espetacular. Seu serviço de bordo é impecável,
imaculado. Na primeira classe, você pocê pode optar por
refeições ocidentais ou japonesas. Entre elas, a
suntuosa Kaiseki, na melhor tradição de Kyoto. As
comissárias vem cuidar de você vestidinhas em
cermioniosos kimonos, enquanto um "Chief Purser"
supervisiona a cabine trajando um elegante smoking.
Deslumbrante.
Singapore, a melhor do mundo
Singapore Girl, you`re a great way to fly. O slogan da
empresa, um pouco sexista talvez, não deixa dúvidas e
deve traduzir os comentários dos passageiros após o
desembarque. Na Primeira Classe, os menús são
apresentados em elegantes encadernações com capa de
couro, reutilizáveis. A diversidade étnica do país se
reflete no conteúdo: há pratos indianos, chineses,
orientais diversos (japoneses, coreanos) e também
ocidentais.
Se a empresa serve champagne na Classe Econômica,
imagine então a Primeira Classe. Lá, o padrão é verter
nas taças de cristal Dom Pérignon e/ou Krug Grand Cuvée.
Os brancos vão de Chablis Premier Cru à alemães
Spätlese. Nos tintos, destaques sempre para um Bordeaux
pelo menos de categoria Grand Cru Classé ou Premier Cru.
Para acompanhar a sobremesa, jóias como Tokaji Aszú 5
Puttonyos e um Porto com mais de 20 anos.
A poltrona é a mais confortável do céu. A programação de
áudio/video é a melhor disponível no ar, e rendeu
diversos prêmios à SQ no segmento de entretenimento de
bordo. E completando tudo isso, as Singapore Girls vão e
voltam sorrindo dentro de saris desenhados por
Givenchy... Você sai de um vôo na Singapore achando que
morreu e chegou no céu.
Qantas never crashed...
... Como dizia Dustin Hoffmann em Rainman. Digo mais, em
matéria de serviço de bordo é que a autraliana Qantas
never crashed mesmo. Classe até dizer chega, aliada à
contagiante naturalidade do povo australiano são uma
combinação perfeita encontrada na empresa aérea
australiana. Pratos excelentes, regados pelas generosas
e magníficas cepas cultivadas no país, tornam cada
refeição memorável. O cuidado com a apresentaão de
cartas e cardápios, modernos e diferenciados, empolga. O
bom humor e descontração dos tripulantes faz a viagem
terminar antes do que deveria. É sempre assim.
Pan Am, old charm
As empresas aéreas internacionais dos Estados Unidos
nunca estiveram entre as melhores do mundo em termos de
serviço de bordo. Mas uma menção honrosa deve sempre ser
feita à finada Pan Am. Afinal, foi ela quem inventou a
aviação comercial como a conhecemos. Dos uniformes
náuticos a procedimentos de segurança, de normas de
conduta, serviço e operações, a Pan Am escreveu o livro.
E tinha classe, sim senhor. Cansei de fazer ótimos vôos
com a saudosa, que fazia um whisky sour como nenhuma
outra. Gone, but never forgotten.
Cafezinho e a conta, por favor
Com várias passagens rabugentas neste texto, caro
leitor, peço desculpas e concluo dizendo que carrego a
mágoa de viver em tempos deselegantes, de voar em
companhias sem classe e receber um tratamento impessoal,
sem charme nem esmero. Como vôo bastante, fico ligado
nos serviços e é natural que sinta saudade dos tempos
d`antanho. Dos tempos em que o leite vinha em garrafa de
vidro e a gente botava terno, chapéu e gravata para
"andar de avião".
Gianfranco Beting