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Cartering: um mundo fascinante


Nenhuma indústria que movimenta US$ 14 bilhões ao ano é, digamos, café pequeno. Pois é exatamente este o tamanho do mercado do conjunto de atividades responsáveis pelo planejamento e execução das refeições servidas à bordo de companhias aéreas, conhecido no meio aeronáutico como catering. vamos abrir este cardápio agora para você, leitor do jetsite. Bom apetite!

Restaurantes alados

Desde 7 de outubro de 1919, quando um Fokker da KLM decolou de Londres para Amsterdam, o mundo da aviação entrou na era dos vôos regulares de passageiros e na era do catering. Muita coisa mudou desde os simplórios sanduíches de carne frios acompanhados de frutas, o cardápio servido aos heróicos passageiros que naquele dia atravessaram o Canal da Mancha, aos mais de 42.000 diferentes ítens de catering embarcados regularmente em cada vôo de longa duração de um Boeing 747-400.

Nada menos que US$ 14 bilhões são investidos na alimentação de passageiros a cada ano. Deste total, Ásia e Pacífico gastam por ano 4.9 bilhões, a Europa 4.2 bilhões, a América do Norte 3.6 bilhões, a América Latina US$ 400 milhões e o restante do mundo, US$ 900 milhões. Nestes valores incluem-se os gastos com bebidas e comidas servidas à bordo e em terra, nas salas de embarque.

Até os anos 50, voar era para um segmento insignificante da sociedade. Apenas os muito ricos podiam pagar pelos bilhetes. Havia cerimônia, pois voar já era um programa em sí. As relações eram pautadas por uma maior formalidade tanto dos passageiros para tripulantes como das "aeromoças e aeromoços" para seus passageiros, integrantes de uma elite que podia pagar pelas passagens, que não raro, eram de classe única, ou seja, de Primeira Classe.

Até o final da Segunda Guerra, os aviões voavam trechos de no máximo cinco, seis horas. Sua autonomia limitada, suas condições operacionais incipientes não permitiam maior atenção ao serviço de bordo. Até porque, por voarem baixo enfrentavam nuvens carregadas e enjôos eram frequentes. E como se sabe, a fome é a primeira a desaparecer numa situação destas. Os mais antigos se lembram do odor de desinfetante usado para tentar apagar das cabines aquele perfume característico. Era comum subir numa aeronave e já ficar enjoado só de sentí-lo.

Após o término do conflito, os fabricantes de aeronaves começaram a desenvolver os grandes e clássicos quadrimotores com alcance transoceânico. A invenção do radar e a instalação de pontos de navegação fixos, permitiram o início de vôos noturnos com maior frequência, dando origem à maior utilização das aeronaves, em escala global.

Os Constellation, DC-4, DC-6, Stratocruiser e depois os DC-7 enfrentavam longos trechos de mais de 12 horas de duração. Em etapas assim, duas coisas aconteciam: sono e fome. A primeira metade da equação foi resolvida aumentando o conforto: as cadeiras viraram poltronas, as poltronas viraram camas. A segunda foi um pouco mais complexa: as caixinhas de lanche frio, até então o máximo em refeições a bordo, começaram a ser substituídas por refeições mais elaboradas, aquecidas nas galleys, como são conhecidas as cozinhas à bordo dos aviões.

É desta época também que começa a haver competição entre as empresas. Até a Guerra, não eram muitas as companhias aéreas disputando os mesmos mercados. Ao contrário, antes do conflito os governos protegiam as empresas, designando-as com exclusividade para determinadas linhas e áreas de operação. Como sabemos, o ser humano só progride quando motivado, seguindo a lei do mínimo esforço.

Prato principal: a Era de Ouro

Com o surgimento da competição entre as empresas, os serviços foram percebidos como diferenciais pelos diretores de operação ou mesmo pelos presidentes das companhias aéreas (lembre-se: ainda não havia sido "inventado" o marketing em escala planetária). Os executivos trataram então de aprimorar cabines e serviços, buscando meios para superar a concorrência. Afinal, os aviões eram mais ou menos os mesmos, voando para a empresa A ou B com a mesma velocidade, alcance e altitude. Portanto, para se diferenciar, era fundamental caprichar no serviço de bordo. O mundo da aviação entraria na era dourada do transporte, um tempo que unia elegância, glamour, educação... e grandes refeições.

Foi nestes grandes quadrimotores à pistão, com suas múltiplas escalas em longos vôos intercontinentais, que o mundo conheceu a Era De Ouro da classe e da atenção ao passageiro. O padrão destes vôos hoje nos fariam corar de inveja, enquanto mastigamos nossas barrinhas de cereias. É claro que naqueles tempos, palavras como "fitness", triglicérides, radicais livres e outras vicissitudes do mundo moderno pareciam ficção científica.

Comia-se com indulgência: sem dó, sem culpa, com prazer. Ou como se o mundo fosse acabar na hora seguinte, o que, diga-se de passagem, não era assim tão raro sob as muitas vezes precárias condições de segurança dos vôos de então.

Estávamos a anos-luz da Geração Saúde, gente que acha graça em sobreviver às custas de uma ração básica composta por isotônicos, peito de frango cozido e endívias. Já disseram: "Em duas semanas de regime, consegui perder 14 dias". Ou ainda: "Fazer regime é a arte de prolongar a vida tornando-a insuportável". O que talvez explique a tendência de algumas empresas aéreas nos dias de hoje, que pegando uma providencial carona neste modismo, condenem sem remorsos seus passageiros a morrerem de inanição.

Acompanhamentos: uma grande equipe

Por trás da prosaica bandejinha, há um batalhão de profissionais envolvidos. O universo do catering é gigantesco e complexo, e começa pelo fato de que a bandeja tem de ser servida pelo comissário, parte fundamental do processo.

Quando a United Airlines contratou suas primeiras aeromoças, colocou um anúncio no jornal recrutando enfermeiras, que acabaram sendo de fato as primeiras profissionais a trabalhar nas cabines. No pós-Guerra, a coisa já era outra. Escolhidas por seu charme, elegância e desenvoltura, estas profissionais deveriam saber mais do que simplesmente aplicar band-aids.

Escolhidas com rigor, as comissárias (e comissários) eram pessoas de classe, com vontade de conhecer o mundo, de viajar. Via de regra, eram afáveis no trato, falavam vários idiomas e se portavam com elegância, atributos fundamentais para lidar com o público, uma tarefa sempre desgastante. Estas Embaixadoras do Ar protagonizariam nas décadas seguintes (até o final dos anos 70) a fase áurea dos serviços de bordo.

Tudo começaria a mudar com a chegada do Boeing 747, em 1970. Até então, mesmo com os jatos de primeira geração, em cada vôo havia no máximo 150 passageiros em média, mas comumente menos de 100. Com menos gente pra servir, é natural que os comissários pudessem prestar um serviço mais pessoal, atencioso. Além disso, a Era dos Jumbos aumentou dramaticamente o número de passageiros na classe econômica ou turista, que recebem refeições mais simples.

Para os comissários, isso aumentou a carga de trabalho e diminuiu o tempo de dedicação para cada passageiro. Veja a média de comissários por passageiro nas companhias aéreas: 1 para 3 na Primeira Classe, 1 para 8 na Classe Executiva e um para 40 na Falta de Classe Econômica. Em resumo, tente cuidar de 450 bocas famintas, inovação trazida com o 747: não dá pra fazer milagre.

Os bastidores

Os comissários são os responsáveis pela preparação e entrega do serviço em sua parte final: montar os pratos e serví-los aos passageiros. Mas uma refeição à bordo de uma aeronave começa horas antes, no solo, nas cozinhas das companhias aéreas ou das empresas de catering, especializadas em preparar a comida que será servida nos vôos.

Não raro, estas também prestam serviços de comissaria, isto é, cuidam da colocação e da retirada nas aeronaves das refeições e ítens dos serviços de bordo tais como bebidas, bandejas, copos, talheres, carrinhos, gelo, água e o que mais for necessário ao serviço. Hoje em dia, algumas empresas aéreas tem departamentos inteiros que cuidam disso. A maioria porém, terceiriza estas atividades para empresas especializadas, como por exemplo, a LSG Sky Chefs, que é maior do mundo e faz parte do grupo Lufthansa.

Hoje em dia, os bons profissionais de cabine, trabalhando nas melhores empresas aéreas, estudam enologia, gastronomia e tem cursos dedicados de apresentação de pratos e bebidas. Ou seja, sabem explicar e diferenciar o que é servido nos pratos e copos nas cabines. Conhecem vinho, sabem serví-lo, tirar eventuais dúvidas e fazer recomendações aos passageiros. Muitos fazem cursos de barman, para preparar coquetéis a bordo.

O mundo mudou

Os ruidosos motores radiais dos Connies e Douglas eram abafados com bolinhas de algodão. O cansaço era amparado por poltronas confortáveis ou até mesmo camas. A fome e a sede eram mitigadas por refeições suntuosas, verdadeiros rituais bacantes com mais de 5 pratos e de até três horas de duração. Vinhos de classe, caviar, champagne e uma infinidade de drinks e coquetéis eram a norma na década de 50 e 60.

A aviação era assim. Hoje em dia, cada vez mais, isso é coisa do passado. O passageiro moderno chega apressado ao aeroporto, enfiado num terno e gravata, tagarelando ao celular e corre para pegar o avião em mais uma viagem a negócios. Repare: antes era "andar de avião", hoje é "pegar o avião", como se ele fosse escapar.

Ou então, trajando jogging (ou bermudão) e tênis, vai o mais descontraído e confortável possível, já antecipando as merecidas férias. A trabalho ou a passeio, o estilo pouco importa: o fato é que voar hoje em dia é algo natural, corriqueiro, sem nenhum glamour.

Fazendo mesmo uma crítica de costumes, nota-se que a elegância e o apuro dos passageiros foi mesmo para o espaço. O fenômeno ocorre também nas empresas aéreas. Muitas vezes, quem antes era tratado com salamaleques, hoje é esnobado ou então apontado de forma pouco carinhosa como sendo "aquele chato na poltrona 37J" ou "aquela perua lá na dois-alfa". Assim, como se fossem acidentes geográficos na paisagem da cabine.

Num planeta em que Tom Jobim vende 30.000 CDs e duplas sertanejas vendem 30 milhões de discos, não poderia ser diferente. É claro que há exceções. Mas o fato é que, com a crise na aviação em escala global, um dos principais ítens abatidos no que se costuma chamar de "serviço de bordo" foi justamente a qualidade, quantidade e classe na apresentação das refeições.

No mais das vezes, as refeições hoje em dia são tratadas pela maioria das companhias aéreas como ratazanas prenhas: a pauladas, eliminadas ao primeiro sinal de crise ou na primeira reunião de budget, o que vier primeiro.

Isso ficou ainda mais claro depois que surgiram as empresas low-cost/low-fare, que em troca de cobrar mais baratinho pelas passagens, reduzem os lanches a bordo ao básico ou simplesmente, a um saquinho de amendoins. E papa-tango, saudações. Nada errado nesse caso, afinal, o passageiro é avisado de antemão. Duro mesmo é quando você embarca num vôo de uma empresa dita (e paga) comofull service e recebe um sanduicheco de lembrança. Aí a fraude está configurada, especialmente para pessoas estranhas como eu, que sentem necessidade física de almoçar e jantar todos os dias.

Para este grupo de terráqueos ao qual pertenço, voar hoje em dia pode parecer um sacrifício, e muitas vezes é mesmo. Tomemos os Estados Unidos como exemplo. Em alguns vôos longos, transcontinentais, de mais de 5 horas de duração, algumas companhias aéreas deram para abolir completamente o serviço de bordo. Você decola as 9 horas da manhã e aterrissa do outro lado do país depois das três da tarde, com apenas uma coca-cola no bucho. É, literalmente, dose.

A vingança não tardou. De tanto enfrentar diabéticos passando mal pelo jejum forçado à crises de choro, mal-humor e raiva, algumas empresas aéreas perceberam a mancada e voltaram atrás - mas cobrando por isso. Hoje, companhias como a America West cobram até 12 dólares por um café da manhã ou um lanchinho. A tendência se espalha: quer comer, vai pagar. Até a Swiss, sucessora da Swissair afirma que irá cobrar pelas refeições. É a pá de cal na cordialidade e da elegância, que quem diria, form parar no Irajá.

Fazendo o catering certo

Catering já foi, nos seus áureos tempos, uma área de atuação direta do presidente da empresa aérea. A ordem, por décadas, foi de se buscar a excelência, de impressionar o passageiro e agarrá-lo pelo estômago. Não mais.

Por razões de ordem prática e econômica, o bom catering hoje é o que ouve as preferências dos passageiros e tem capacidade de encontrar mecanismos para satisfazer desejos e necessidades do público ao menor custo possível. Se levarmos em consideranção que uma refeição internacional típica, de classe econômica, custa de US$ 5,00 a US$ 8,00 às companhias aéreas e lembrarmos que muitas delas servem mais de 150 milhões de refeições por ano, faça os cálculos e você logo entenderá porque o sanduíche é cada vez menor. Outro ponto importante: para evitar desperdícios, é fundamental trabalhar com uma estimativa real de ocupação da aeronave a cada vôo. Afinal, leis internacionais obrigam as companhias aéreas a jogar fora tudo o que foi embarcado, seja consumido ou não, reaproveitável ou não.

Seja como for, empresas sérias tentam fazer o melhor com orçamentos cada vez menores. Para saber o que querem e exigem os passageiros, os departamentos de marketing das empresas trabalham para dar ouvidos ao consumidor e entregar o que ele quer. Com base nestes dados, os cardápios são normalmente planejados com seis meses de antecedência e trocados em ciclos que variam de classe para classe e de empresa para empresa mas que, via de regra, mudam a cada duas semanas. Assim, o viajante frequente terá menores chances de ter de repetir o prato.

Na hora de desenhar o que será servido, vários fatores pesam na escolha de pratos e acompanhamentos. Os principais são: considerar o horário de partida e chegada, duração do vôo, regulamentos internacionais de saúde, questões étnicas e religiosas, classe de serviço, orçamento da empresa, sazonalidade e preço dos ingredientes, tamanho e equipamentos disponíveis nas galleys, número de comissários necessários para servir a refeição, questões de higiene, normas de segurança, capacidade de requentamento de um prato, capacidade de tolerância às baixas umidades nas cabines... a lista é enorme. Assim, começamos a montar um quebra-cabeça que mostra o quão complexa é a área.

Ainda sob o ponto de vista operacional, as companhias precisam pensar no carregamento e descarregamento do serviços nos aeroportos e nas aeronaves, no fluxo de apresentação das refeições à bordo e no controle da saída e retorno de peças reutilizáveis tais como copos e louças. Todos estes aspectos passam por uma questão básica em catering: a comida é produzida em terra e consumida no ar. Qustões de higiene, conservação, e aparência ganham uma importância que o passageiro comum não percebe. Sabe lá o que é uma salada com mais de 15 horas de vida? E um ovo frito na noite anterior? Uma carne assada com 14 horas de forno? Pois é, tudo isso tem que ser muito bem pensado antes de chegar à sua bandejinha. Afinal, alimentos perfeitamente comestíveis e bem apresentados podem não resistir às diferenças de temperatura e pressão das cabines. E dependendo da classe onde o passageiro está, o serviço muda muito. Tomemos como padrão de comparação, serviços típicos intercontinentais.

First Class

Tradicionalmente, serviços de Primeira Classe dão grande ênfase à personalização. É o passageiro quem decide pelos pratos, seus acompanhamentos, e dependendo da receita, o ponto de cocção de determinados ítens, como por exemplo, carnes. Os pratos não vêm montados da galley em bandejas, como ocorre nas outras classes. Eles vêm em carrinhos ou trolleys e são servidos de travessas, montados na frente do passageiro.

Ítens como caviar, frutos do mar como lagostas e camarões, salmões e outros peixes defumados são apresentados como entradas, seguidos de dois pratos principais, normalmente uma massa ou peixe e depois carnes vermelhas. Há várias opções em todas as fases. Depois de retirado o prato principal, tábuas com queijos e pães, frutas e finalmente doces e chocolates fecham a refeição. As bebidas são escolhidas em cartas bem-feitas e bem impressas, com apresentações gráficas caras e elaboradas. Nas boas empresas do ramo, trabalha-se com 80% a 100% de sobreposição, ou seja se todos os passageiros pedirem os mesmos pratos, estes nunca faltarão.

Classe Executiva

Normalmente os passageiros escolhem sua refeição em cardápios apresentados no início do vôo. Não há opções de entradas mas existem opções de pratos principais, de três a quatro sendo a norma. Há 60% de sobreposição, ou seja: você tem boas chances de encontrar disponível a sua preferência de prato principal. Mas a grande diferença é na apresentação: os pratos chegam à mesinha montados, em quantidades previamente determinadas, ainda no solo. Raramente as empresas fazem o "mise-en-place" na frente do passageiro.

Depois dos pratos principais, frutas e queijos, sobremesas e licores fecham a refeição. Embora haja uma bandeja, os pratos são colocados e retirados desta bandeja, um de cada vez. A bandeja serve mesmo para acomodar pratos, talheres e copos. Em relação à Primeira Classe, uma seleção mais modesta de bebidas, em variedade e qualidade, são servidas graciosamente.

Classe Econômica

Aqui, o grande número de passageiros implica num serviço padronizado, sem muitas chances de personalização. No máximo, uma opção de prato principal - e olhe lá. Bebidas, normalmente domésticas, são oferecidas uma ou duas vezes. E, de uns tempos para cá, algumas empresas cobram até mesmo pelas cervejas. Tudo vem montado na famosa bandejinha, que inclui a refeição completa: entrada, saladinha, prato principal e sobremesa. A sobreposição não existe: apenas uma reserva técnica de 5 a 10% a mais na quantidade de refeições em relação ao número de passageiros embarcados.

Claro que estes são os parâmetros básicos da indústria. Exceções, boas e más, acontecem. A Singapore Airlines serve champagne na classe econômica - de graça. E nas piores empresas aéreas, não há opções de pratos principais.

Mas, no final de contas, quão importante são as refeições à bordo? Todos sabem que sempre houve um número bastante significativo de empresas aéreas que venderam justamente isto, usando comidas e bebidas para vender passagens. Na prática, porém, o catering como fator de decisão por uma determinada empresa aérea tem uma capacidade cada vez mais limitada.

Conveniência, preço e segurança ainda ocupam os principais critérios de escolha. E, depois que as low-cost / low-fare aboliram refeições a bordo, em mercados mais maduros como os Estados Unidos, alguns passageiros simplesmente esqueceram que poderiam comer à bordo.

No Brasil, a resistência a eliminar refeições ainda é maior. Apesar do sucesso da Gol, não há passageiro que não saia satisfeito de um vôo onde lhe oferecem uma refeição saborosa e bem apresentada. Afinal, é durante a hora da refeição que o passageiro tem mais tempo de prestar atenção na companhia e nos seus serviços...

À la carte: escolha sua empresa favorita

Perdoe-me o trocadilho, mas acho este um tema de dar água na boca. Para mim, tão fascinante quanto a história das companhias aéreas e de seus aviões, é estudar a história de seus serviços, especialmente o histórico das refeições servidas a bordo. Estudando o tema com mais rigor, a gente percebe o DNA, o "pedigrée" de uma empresa aérea - e o seu sucesso no mercado - ao travarmos contato com suas tradições eno-gastronômicas. Com a ajuda do arquivo da revista Flap Internacional a ilustrar nossa viagem, você vai ficar sabendo o que cada empresa aérea fez (ou deixou de fazer )nas últimas décadas.

Varig - Construindo sua reputação com copos e talheres

A Varig foi considerada até os anos 80 como uma das melhores empresas aéreas do mundo, e deve esta imagem de excelência não apenas à esmerada e cuidadosa manutenção, segurança e eficiência de suas operações. Deve muito de seu prestígio à sábia decisão de seu mais famoso presidente, Ruben Berta, de buscar se diferenciar e competir contra poderosos concorrentes prestando um serviço impecável. Podemos dizer que a fase áurea da companhia coincide com a inauguração de seus vôos para New York, em 2 de agosto de 1955, utilizando os Super Constellation.

Berta sabia que tinha pela proa a formidável Pan Am. A então modesta empresa brasileira teria de se superar para poder competir. Então Berta contratou no Rio de Janeiro o Barão austríaco Max Von Stuckart, que comandava um dos melhores restaurantes da cidade, o lendário Vogue. Berta foi direto: "Faça algo de que possamos nos orgulhar".

Stuckart, na melhor tradição de classe e sofisticação austro-húngara, não fez por menos: Em breve as galleys dos Connies acomodavam iguarias como lagostas ao Thermidor, faisões, omeletes aux fines hérbes (feitas na hora), latas de caviar. Grandes vinhos fluíam nas cabines com a mesma desenvoltura que os motores do Constellation queimavam óleo lá fora. Eram vôos de mais de 26 horas de duração desde a decolagem em Porto Alegre até o Pouso em Idlewild, New York, com escalas em São Paulo, Rio, Belém, Port of Spain e Ciudad Trujillo. E como etalhe, as limitadas galleys dos Super Constellation obrigavam as tripulações a lavar, em cada escala, todos os copos, taças, pratos e talheres de prata usados no serviços, uma carga de trabalho hoje impensável.

A Varig pagou o preço e colheu os resultados. De novata, passou a referência internacional em serviço de bordo. Mesmo competindo contra os jatos da Pan Am, a Varig cravava seu nome no panteão das grandes empresas aéreas. O padrão foi naturalmente estendido aos outros serviços internacionais da companhia, sobretudo após adquirir a Real e herdar as rotas da Panair. O luxo destes vôos agora era usado como diferencial nos DC-8, Convair 990 e 707 intercontinentais e nos Constellation, DC-6, Caravelles e Electras usados nas rotas-tronco domésticas e intra-sulamericanas.

Eu mesmo tive a sorte de experimentar a classe da Varig em outros tempos. Por exemplo, em 12 de fevereiro de 1987, voei para Paris na First Class de um DC-10-30. Íamos todos a convite da Airbus para o roll-out do A320 em Toulouse. A bordo estavam vários diretores da Varig, entre eles Hélio Smidt e Rubel Thomas, número um e dois na hierarquia da empresa. Voava pela primeira vez na First Class da Varig e tinha grande expectativa em relação ao tão famoso serviço. Decolamos do Galeão no RG766, operado naquela noite pelo PP-VMW. O que eu vi nas horas seguintes foi simplesmente fabuloso: latas de caviar Oscietra, lagostas, cascatas de camarões-rosa abriam o ragabofe opíparo. Tentando parecer o mais cool possível, vibrava internamente com o luxo e a classe da Pioneira.

Omar Fontana, sentado ao meu lado, observava de rabo de olho minha cara de bobo. Depois de vários pratos, surgiu da galley um comissário empurrando um carrinho, trazendo um verdadeiro churrasco gaúcho, e pasme: no espeto. O francês na poltrona atrás de mim, quando viu a enorme peça de carne, berrou: "u-lá-lá, sacre-bleu!" Perguntei ao Cmte. Fontana, depois de finda a refeição, se haveria algo de especial por se tratar de um vôo com diretores da empresa a bordo. Ele me respondeu com a experiência de dezenas de vôos na First da Varig: "Tudo normal, é sempre assim".

Os anos se passaram e o serviço da Varig, como o de muitas outras empresas, perdeu parte do seu brilho. Mas não é exagero dizer que a empresa gaúcha construiu sua reputação com querosene, champagne e caviar.

Transbrasil: feijão maravilha

Omar Fontana, a despeito de reconhecer a excelência do serviço da Varig, discordava da Pioneira e dizia a quem quisesse ouvir: "Avião não é restaurante!" Neste ponto discordávamos. Dependendo do vôo, da classe de serviço e do horário de partida, avião tem de ser restaurante sim, e dos bons. Foi o que a própria Transbrasil fez, sobretudo em dois momentos importantes de sua história. O primeiro em 1970, com a chegada dos coloridos BAC One-Eleven, que Fontana apelidou de "Jatão".

Além das cores vibrantes, por fora e por dentro, nos uniformes e nas poltronas, o marketing da empresa teve uma fase colorida. Nesta época, a empresa mudava sua razão social e deixava de se chamar Sadia Transportes Aéreos e passava à sua designação definitiva. Para festejar, Omar Fontana mandou criar um serviço de bordo tipicamente brasileiro. Anúncios de revista promoviam sem meias palavras, em letras cumbucais: Feijoada a bordo.

Todas as quartas e sábados, naturalmente, os Jatões decolavam com suas galleys exalando o inconfundível aroma das partes porcinas (by Sadia, evidentemente) boiando no grosso caldo do feijão preto. Detalhe: com caipirinha para companhar. Foi um sucesso.

Em tempos mais recentes, a empresa de Omar Fontana criou um serviço esmerado, quando iniciou vôos diários e diurnos para New York. A partir de outubro de 1995, o TR770/771 era um vôo que decolava de Guarulhos às 12:00 e pousava em JFK nove horas depois. O seu horário de operação pedia refeições mais elaboradas, e foi exatamente isso que a Transbrasil fez. Sucesso de crítica, os cardápios apresentavam 4 opções de prato principal no almoço, sendo dois de inspiração regional, tipicamente brasileiros. A apresentação gráfica dos materiais à bordo, entre eles os cardápios e guias de entretenimento, foi premiada internacionalmente.

Air France: expectativas correspondidas

O povo que inventou palavras e expresões como charme, savoir- vivre e savoir-faire não poderia deixar de ter uma companhia aérea de classe. E sempre foi assim com a Air France. É desnecessário falar da categoria dos vinhos, das receitas servidas, da qaulidade das louças de Limoges... e dos pratos da nouvelle cuisine, isso sem falar naqueles de receitas mais tradicionais. Falam alto também as tradições aeronáuticas da empresa, cujas origens remontam aos anos de Mermoz e da L`Aeropostale, usadas como temas nas cabines, cardápios, louças e toalhas de linho. E, ah, o champagne é muito bom.

British Airways: to Fly, to Serve

Franceses adoram esta piada: os britânicos são o povo mais perverso do mundo, pois assassinam os animais duas vezes: quando lhes tiram a vida e depois, quando lhes colocam numa panela. Discordo. A Velha Albion pode não ser o berço de grande invenções culinárias além dos "fish and chips" e tortas de rins, mas suas empresas aéreas sabem oferecer um padrão de serviços impecável. Das poltronas-cama à cardápios excepcionalmente bem feitos e requintados, voar com a British sob a administração Sir Colin Marshall (depois de 1985) é um prazer. Vinhos soberbos, pratos clássicos britânicos e aquela educação ímpar fazem uma refeição na BA ser mesmo memorável. O slogan da empresa sob a administração Marshall já diz tudo.

Alitalia: Dolce Far Niente a 13,000 metros

O mesmo raciocíno usado para a Air France vale para a Alitália. Quem inventou "il dolce far niente" só poderia mesmo prestar um ótimo serviço de bordo, especialmente na classe Magnífica, a executiva da empresa. Os jatos que chegam ao Brasil trazem este padrão, que alia receitas saborosas, vinhos excelentes e comissárias usando luvas de couro, um toque sutil e elegantérrimo. E La Nave Vá.

Swissair: foi bom enquanto durou

A Swissair era uma das minhas preferidas. Suas equipes, naturalmente poliglotas, eram o máximo em simpatia e qualidade de serviço. Os chocolatinhos Cailler distribuídos à bordo durante o embarque descontraíam todo mundo. Os sistemas de entretenimento, as confortáveis poltronas nos MD-11 eram soberbas. Mas o que destacava a companhia era a qualidade excepcional das refeições, a começar pelo salmão Balik servido na primeira classe, uma iguaria inesquecível. Aliás, uma das melhores coisas que comi na vida não foi em terra: foi na primeira classe da empresa. Uma lasagna de cogumelos frescos que um dia reportarei aos meus netos. Ela se foi e deixou muita saudade, deixando toda esta tradição para a Swiss carregar.

Virgin Atlantic: Cool Britannia

Outra que inovou em tudo, a Virgin é a empresa que tem a imagem e o produto mais moderno nos céus. Sucesso de público e crítica, com 97% de fidelidade em sua Classe Executiva, a Upper Class (uma primeira classse disfarçada), a Virgin dá shows de serviço de bordo: cortesia, educação, profisionalismo, modernidade. Range Rovers te pegam e te levam ao aeroporto. Salas VIP com sauna, lareira e mesas de pinball. Massagistas, sofás e bares a bordo: está tudo lá.

Meu nome é JAL

Como toda boa empresa asiática que se preza, a JAL é espetacular. Seu serviço de bordo é impecável, imaculado. Na primeira classe, você pocê pode optar por refeições ocidentais ou japonesas. Entre elas, a suntuosa Kaiseki, na melhor tradição de Kyoto. As comissárias vem cuidar de você vestidinhas em cermioniosos kimonos, enquanto um "Chief Purser" supervisiona a cabine trajando um elegante smoking. Deslumbrante.

Singapore, a melhor do mundo

Singapore Girl, you`re a great way to fly. O slogan da empresa, um pouco sexista talvez, não deixa dúvidas e deve traduzir os comentários dos passageiros após o desembarque. Na Primeira Classe, os menús são apresentados em elegantes encadernações com capa de couro, reutilizáveis. A diversidade étnica do país se reflete no conteúdo: há pratos indianos, chineses, orientais diversos (japoneses, coreanos) e também ocidentais.

Se a empresa serve champagne na Classe Econômica, imagine então a Primeira Classe. Lá, o padrão é verter nas taças de cristal Dom Pérignon e/ou Krug Grand Cuvée. Os brancos vão de Chablis Premier Cru à alemães Spätlese. Nos tintos, destaques sempre para um Bordeaux pelo menos de categoria Grand Cru Classé ou Premier Cru. Para acompanhar a sobremesa, jóias como Tokaji Aszú 5 Puttonyos e um Porto com mais de 20 anos.

A poltrona é a mais confortável do céu. A programação de áudio/video é a melhor disponível no ar, e rendeu diversos prêmios à SQ no segmento de entretenimento de bordo. E completando tudo isso, as Singapore Girls vão e voltam sorrindo dentro de saris desenhados por Givenchy... Você sai de um vôo na Singapore achando que morreu e chegou no céu.

Qantas never crashed...

... Como dizia Dustin Hoffmann em Rainman. Digo mais, em matéria de serviço de bordo é que a autraliana Qantas never crashed mesmo. Classe até dizer chega, aliada à contagiante naturalidade do povo australiano são uma combinação perfeita encontrada na empresa aérea australiana. Pratos excelentes, regados pelas generosas e magníficas cepas cultivadas no país, tornam cada refeição memorável. O cuidado com a apresentaão de cartas e cardápios, modernos e diferenciados, empolga. O bom humor e descontração dos tripulantes faz a viagem terminar antes do que deveria. É sempre assim.

Pan Am, old charm

As empresas aéreas internacionais dos Estados Unidos nunca estiveram entre as melhores do mundo em termos de serviço de bordo. Mas uma menção honrosa deve sempre ser feita à finada Pan Am. Afinal, foi ela quem inventou a aviação comercial como a conhecemos. Dos uniformes náuticos a procedimentos de segurança, de normas de conduta, serviço e operações, a Pan Am escreveu o livro. E tinha classe, sim senhor. Cansei de fazer ótimos vôos com a saudosa, que fazia um whisky sour como nenhuma outra. Gone, but never forgotten.

Cafezinho e a conta, por favor

Com várias passagens rabugentas neste texto, caro leitor, peço desculpas e concluo dizendo que carrego a mágoa de viver em tempos deselegantes, de voar em companhias sem classe e receber um tratamento impessoal, sem charme nem esmero. Como vôo bastante, fico ligado nos serviços e é natural que sinta saudade dos tempos d`antanho. Dos tempos em que o leite vinha em garrafa de vidro e a gente botava terno, chapéu e gravata para "andar de avião".

Gianfranco Beting

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