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Camas a bordo:
A viagem dos seus sonhos
A partir da segunda década do
século XX, a preocupação dos construtores do setor de
aviação não era mais apenas a de colocar o aparelho para
voar. Com a autonomia crescente das máquinas, as viagens
foram ficando cada vez mais longas, com trechos de
várias horas se tornando cada vez mais frequentes. Além
disso, a Segunda Guerra catapultou o desenvolvimento de
auxílios à navegação, permitindo vôos em condições
atmosféricas ruins, e principalmente, à noite. Some um
mais um e temos vôos longos noturnos. O resultado?
Começaram a aparecer à bordo as primeiras camas.
Hoje, mais de 50 anos depois, elas estão de volta como
trunfo na eterna luta pela preferência dos passageiros.
Não todos, é claro: apenas os mais afortunados, capazes
de pagar os preços exorbitantes cobrados pela mordomia.
O jetsite analisa agora a história das camas e suas
muitas lendas e bem, mmm, utilizações.
Após a segunda Guerra, a aviação intercontinental
explodiu. Os antigos bombardeiros iam sendo adaptados
para levar pessoas, não petardos. Suas grandes
capacidades permitiam autonomias transoceânicas. Longos
trechos sobre os continentes e oceanos passaram a ser
norma para viagens internacionais. Os motores a pistão,
barulhentos e trepidantes, provocavam um ruído interno
de amargar, sobretudo depois de mais de duas, três horas
de jornada. O cansaço tomava conta de passageiros e
tripulantes e era imperativo que algum conforto fosse
buscado. Naqueles tempos, quase todo vôo era de classe
única, ou seja, de Primeira. Damas e Cavalheiros
abonados eram os únicos que podiam pagar os preços das
passagens então. Voar era para poucos.
Visando aumentar o conforto dos passageiros, alguns
fabricantes começaram a pensar em instalar camas em
aeronaves. Em junho de 1922, surgiu a primeira cama à
bordo de uma aeronave: a Grands Express Aériens, empresa
aérea francesa, equipou um Farman Goliath com beliches,
no primeiro serviço aéreo noturno entre Paris e Londres.
No mesmo ano, o Handley Page O/400 D8326 HMA Silver Star
foi um dos dois bombardeiros equipados com camas para
passageiros VIP que viajavam durante as conversações do
Tratado de Paz em Versailles.
As formas das cabines eram muito diferentes, pois
grandes frotas não era comuns. Assim, cada aeronave era
praticamente configurada de forma única, um trabalho
artesanal que resultava numa contínua sofisticação dos
interiores. Mais do que um capricho, isso eram
fundamental: naquela época as aeronaves não eram
pressurizadas e voavam abaixo das nuvens, muitas vezes
atravessando tempestades. Na verdade, voava-se tão baixo
que se corria o risco de colidir com um iceberg durante
as travessias do Atlântico Norte. O desconforto
resultante podia ser compensado pelas camas.
Durante os anos 30 e 40, alguns modelos foram equipados
com beliches. Destacam-se entre eles os hidroaviões
Short S23, S25 Sandringham, Latécoère 631 e Boeing 314,
além dos aviões convencionais de terra, como o Lockheed
Constellation e o Boeing Stratocruiser. Quando
realizando vôos noturnos, suas cabines eram adaptadas
para o período, com diferentes arranjos e formas de
camas, adaptadas para proporcionar maior conforto aos
passageiros.
Sem contar estes grandes aviões (para a época) em meados
de 1937 surgiu um pioneiro no setor, especialmente
desenhado para vôos domésticos nos USA, sobretudo
trechos noturnos transcontinentais. O novo avião,
operado pela American Airlines era cohecido então como
Douglas DST (Douglas Sleeper Transport). Na prática, era
mesmo o versátil DC-3, equipado com várias beliches que
eram fechadas com cortinas para maior privacidade dos
passageiros. Uma curiosidade: o DST diferenciava-se do
DC-3 "diurno" por quatro pequenas janelas localizadas na
parte superior e de cada lado da fuselagem (para as
beliches superiores), sobre as janelas normais.
Os jatos mudam tudo
Ao se estabilizarem as principais economias no período
do pós-guerra, profundas mudanças sociais nos países
ocidentais deram origem à uma nova classe social, com
maior poder aquisitivo e com intenção de viver a vida: a
famosa classe média. Junto com ela, surgiam novas
tecnologias aeronáuticas, que provocaram junto às
companhias aéreas dramáticas mudanças nas equações
econômico-financeiras de seus serviços. Afinal, mais
gente queria voar.
Com o advento do jato, as etapas médias caíram,
sobretudo em longos vôos intercontinentais, reduzidos em
quase 40% na duração. O conforto passava a ser
secundário: valia mesmo era chegar antes, nem que fosse
meio amarrotadinho...
E então, a era da classe, do conforto e da elegância
começou a desparecer junto com os Connies e DC-7s, dando
lugar aos reluzentes jatos, que passaram a ser equipados
somente com poltronas. Voar começou lenta e
inexoravelmente a se transformar num meio de transporte
de massa.
O conceito de duas classes vigorava. Havia a Primeira
Classe e a Classe Econômica, mais comumente chamada de
Classe Turística. Esta permaneceu praticamente igual nos
últimos 40 anos, com o mesmo padrão de conforto desde o
tempo dos Boeing 707 e dos DC-8. A Primeira Classe, ao
contrário, vem evoluindo. Se tomarmos o padrão de
conforto das poltronas daquela época, hoje elas
dificilmente seriam toleráveis numa moderna classe
executiva. Reclinavam sim, e eram no máximo duas por
conjunto, o que garantia um lugar na janela ou no
corredor, pois todos os jatos até 1970 tinham fuselagem
estreita. Mas não eram camas.
Neste ano, entrou em operação o Jumbo, apelido dado ao
Boeing 747. Colossal em dimensão, ele no entanto não viu
o conforto dos passageiros traduzir-se em camas. É certo
que outras "idéias geniais" de marketing voaram em suas
asas. Por exemplo, empresas como a Continental, Braniff,
Pan Am e Delta instalavam bares, sofás ou até mesmo
pianos (com pianistas e tudo!) no deck superior. Mas uma
caminha confortável mesmo que é bom, necas de pitiritiba.
E isto perdurou muito tempo, mais até do que deveria.
Com alguns ganhos aqui e acolá, sobretudo promovidos
pelas novas e ousadas empresas aéreas asiáticas, como a
Singapore, Qantas, Air New Zealand, JAL e outras, a
coisa foi melhorando para o lado dos passageiros. Nos
anos 80, as poltronas de primeira classe, que até então
eram apenas reclináveis, embora ainda não reclinassem
aos 180º, foram ficando cada vez mais espaçadas entre sí,
e portanto, cada vez mais confortáveis.
Obrigado, BA!
Mas foi de uma das mais tradicionais e conservadoras
(até então) empresas aéreas do mundo que sopraram os
ventos de mudança. Com a privatização da British Airways
promovida pela Dama de Ferro, Margaret Thatcher, uma
nova mentalidade foi instalada na empresa. Para dirigir
seu marketing, os acionistas escolheram um promissor
executivo que tinha em seu currículo, veja só,
trabalhado como camareiro de navios transatlânticos e
balconista de agências de aluguel de carros. "Onde
aprendi tudo o que deveria sobre como lidar com o
público", dizia ele com orgulho. Esse executivo
tornou-se o CEO da empresa e hoje é seu Chairman. Na
verdade, ele é o grande responsável por colocar a
British Airways no panteão das grandes empresas aéreas
mundiais. Por estes feitos, ele passou de camareiro a
cavaleiro: ungido pela espada daa Rainha Elizabeth II,
hoje ele é Sir Colin Marshall.
Marshall, ao assumir o marketing da empresa, lançou o
slogan que traduziria sua missão e compromisso: "To Fly,
To Serve" (Para Voar, Para Servir). Ele, que aprendeu em
cabines de navios como cada centímetro num transporte
tem obrigatoriamente de ser bem utilizado, encomendou um
projeto revolucionário justamente à uma empresa
fabricante de interiores de embarcações.
Com grande cobertura de mídia e ele próprio trajando um
elegante pijama de seda, Sir Colin anunciou ao mundo em
1996 a nova cama da Primeira Classe na British Airways.
Aliás, nem poltrona nem cama: uma "Suíte" como preferiam
os marqueteiros da BA. Na prática, é uma poltrona que se
transforma numa cama de 190 cm, ao simples toque de
botão. O controle individual garante a possibilidade de
mudar à contento o grau de reclinação da poltrona,
ativar um suporte lombar, ou ainda levantar uma
divisória que garante maior conforto e privacidade ao
passageiro. Isso sem falar nas conexões para laptops e
na tela de vídeo individual de LCD.
Os detalhes de conforto superam o próprio conceito de
assento, perdão, suíte, que pode ainda se transformar em
mesa para jantar a dois ou estação de trabalho. Pijamas
de algodão e edredons de pena de ganso acompanham a
experiência. E, claro, sem falar na seção Comes e Bebes,
igualmente superlativos. Um sucesso estrondoso.
Suddenly, daquele dia em diante, você voava numa cama da
British ou, em última análise, ia miseravelmente
sentado, como os mortais da classe econômica. Pior ainda
se pagasse os mesmos US$ 8.000,00 por um bilhete de
Primeira Classe nas concorrentes, que ainda não tinham
cama para oferecer...
A Primeira Classe, que historicamente apresentava
ocupação de 30% dos assentos, passou a voar co 70% das
suítes ocupadas, tanto é assim que alguns 747 tiveram
que ser remodelados para a inclusão de um par extra de
suítes, passando de 12 para 14. Em alguns Boeing 777 da
BA, são até 17 suítes.
É claro que a competição não passou recibo e logo tratou
de copiar a idéia. E em alguns casos, superá-la, como na
própria Qantas e principalmente a Singapore Airlines,
onde os bancos são forrados de couro Connolly, os mesmos
usados nos bancos dos Jaguar e Rolls Royce. No Brasil, a
novidade está presente hoje nos 777 da Varig e nos A330
da TAM.
Mas então, o grande diferencial competitivo da BA
começou a se diluir. Ora, que faz uma, faz duas. Então a
companhia britânica foi a primeira no mundo a instalar
camas na sua Business Class. Claro que não é tão
espaçosa, mas ainda é uma cama, sim senhor, que reclina
180º e garante um vôo confortabilíssimo. Hoje, a
Singapore, a TAP, Korean, Asiana, SAS, e agora também a
Lufthansa instalam camas nas suas novas e redecoradas
classe executivas. Será que a British Airways vai sair
na frente e instalar camas lá atrás, onde voa a
"tigrada" toda, lá na Tiger Class?
Tomara. E pensar que o renascimento das camas à bordo se
deve à um ex-camareiro de navio.
Giulessa Concon