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A 1º comissária do Brasil

Ícaros e Pinguins Jetsite entrevista Alice Klausz Dona Alice Editha Klausz é uma dama. Uma dama com vontade e energia de ferro. Um senhora profissional, que hoje se entrega, depois de décadas dedicadas à Varig, a uma segunda e não menos notável carreira, como você vai ver a seguir. Fomos graciosamente recebidos por ela em seu impecável apartamento no bairro do Leblon, Rio de Janeiro. É lá onde Dona Alice guarda seus troféus, suas memórias, as lembranças que trouxe dos quatro cantos do globo, quando comandava e instilava, com obstinação e desmedida paixão, o elevadíssimo padrão de atendimento, ética e apresentação das comissárias da Pioneira. Com você, Dona Alice Klausz, a mais influente e longeva comissária da história da aviação comercial brasileira.

Jetsite: Sua família é de qual origem, Dona Alice?
Meus antepassados vieram da Hungria e da Alemanha para o Brasil. Klausz é húngaro.

Jetsite: Assim como o sobrenome Berta.
Exato. Mas a família de minha mãe é de origem alemã, da região de Sachsen. Eles migraram para o Brasil e, como tantos conterrâneos seus, fixaram-se no Rio Grande do Sul. Até os nove anos de idade, eu só falava alemão.

Jetsite: Quando a senhora despertou para a aviação?
Bem, na foi muito mais tarde do que muita gente imagina. Primeiramente, estudei e comecei a trabalhar como bibliotecária. Então, fui estudar direito, curso que interrompi e só viria a concluir em 1977. Naquela época, estudante ainda, li em um jornal um anúncio da Varig convocando jovens para trabalhar como aeromoça. Pensei comigo mesma: "Porque não?" Fui fazer a seleção e acabei sendo aprovada. Começei no primeiro de Agosto de 1954.

Jetsite: Época em que a companhia se preparava para receber seus primeiros Constellations.
Sim, foi para voar neles que a empresa contratou a mim e a outras 19 jovens, as primeiras comissárias da história da companhia. Até então só havia comissários. Muitos deles, eram ex-garçons, contratados nos restaurantes de Porto Alegre, veja só.

Jetsite: O que fez a Varig mudar de ideia e contratar aeromoças?
Uma decisão de Seu Berta. Ele achava que, com os voos longos nos Constellations que a companhia iria receber e que viriam equipados com poltronas-leito, seria no mínimo deselegante ter homens cuidando das senhoras passageiras à bordo. Naquela época, era comum as pessoas trocarem de roupa em pleno voo e dormirem trajando pijamas. Seu Berta queria, e com razão, ver apenas mulheres cuidando de nossas clientes.

Jetsite: Como era Ruben Berta no dia a dia?
Muito sério, muito focado. E sobretudo, exigente. As pessoas tinham o maior respeito por ele. Não, diria mais: as pessoas morriam de medo dele. Até mesmo os diretores. Tinha um deles, e olhe que era um homem importante na Varig, que pulava do chão apenas por ouvir o nome de Seu Berta (risos). Ele comandava respeito, mesmo. Até porque todo mundo via que Seu Berta se dedicava de corpo e alma para a companhia. Trabalhava os sete dias da semana, o dia todo. De madrugada, e não me pergunte como, naquele frio danado do inverno lá no Sul, lá ia ele distribuir sopa que trazia de casa para os mecânicos tomarem de canecas em pleno hangar. Você acredita nisso?

Jetsite: Não consigo imaginar outro Presidente de companhia aérea que faça ou tenha feito isso.
Ah, pois é. Então veja que ele cuidava de todos como se fossem filhos. Era austero, sim, mas era de certa forma o pai de todos. Sim, tinha um estilo paternalista mesmo. Mas era generoso como só os pais sabem ser com os filhos. Se alguém pedia uma passagem, normalmente ele concedia. Anotava em um pedaço de papel o trecho, assinava, e o funcionário ia pegar o bilhete. Gente como Seu Berta não existe.

Jetsite: E morreu trabalhando.
Não, ele viveu E morreu trabalhando. Morreu em sua mesa de trabalho, se matou de trabalhar. O seu médico havia pedido que ele moderasse seu ritmo de atividade, mas ele não lhe deu ouvidos. Bem, no fundo, acho que ele sabia que não teria muitos anos pela frente e optou por dedicar seus últimos dias à empresa.

Jetsite: Bem, seu último discurso parece uma despedida.
Ah, você sabe disso? Sim, esse discurso foi lido postumamente no final do ano de 1966, dias após sua morte, pelo Dr. Adroaldo Mesquita da Costa. Levou quase duas horas para ser lido. Eu ajudei o Seu Berta na redação. Ele pedia minha opinião, às vezes. Pois era mesmo uma despedida. Ele havia prometido que em 1967 iria diminuir o ritmo, mas morreu antes disso, em dezembro de 1966. Havia escolhido seu sucessor, Seu Erik de Carvalho. Bem, não deu tempo dele se cuidar.

Jetsite: Mas a Varig teve em Erik de Carvalho um sucessor à altura de Berta, não?
Ah, sim. Embora Seu Erik fosse totalmente diferente, outro estilo de pessoa. Era um cavalheiro no mais amplo sentido da palavra. Elegante, comedido, igualmente inspirava respeito e era muito, muito querido por todos, embora fosse mais reservado, mais distante. Quando ele entrava na sala, todos se calavam. Mas não era aquela coisa do medo que o Seu Berta inspirava, era mais na base do respeito mesmo. O Seu Erik era assim. Falava pouco, mas quando falava, dizia tudo. Raramente demonstrava suas emoções, o que o mantinha meio afastado do grupo. De toda forma, todos acreditavam nele, em sua capacidade e seguiam com confiança suas determinações, aceitando a direção que dava à companhia.

Jetsite: Fator fundamental para liderar uma empresa do porte da Varig.
Claro. E a Varig continuou crescendo durante a administração de Seu Erik. Crescendo e se modernizando. Quando ele assumiu, a companhia voava o DC-3 e o Curtiss Commando. Quando ele deixou a direção, a Varig tinha o DC-10 e o maior parque de hangares e manutenção do hemisfério sul. Foi um tremendo Presidente para a empresa.

Jetsite: Mas voltemos à sua carreira. Pouco depois de entrar para a companhia a senhora voou na rota para Nova York, certo?
Sim, fiz parte da tripulação do Comandante Geraldo (Knippling) no primeiro voo inaugural. Foi longo, chegamos mortas de cansaço ao destino mas também com a sensação de dever cumprido. Seu Berta queria tudo sempre impecável e acho que no final da viagem ele não ficou decepcionado (risos).

Jetsite: Nem os passageiros, que logo passaram a dar preferência à Varig ante a dura competição contra a PanAm, não?
Ah, sim. Nossa arma secreta era mesmo o serviço esmerado. Aqueles voos eram mesmo de uma classe só: primeira. As louças, os linhos, os copos e talheres de prata. As atenções e os cardápios, os pratos e os vinhos. Nossos passageiros diziam após cada voo que se comia melhor em um avião da Varig do que nos melhores restaurantes. Era tudo tão caprichado que a companhia contratou um chefe de cozinha, seu nome era Berezansky, que havia sido o Mestre-Cuca da família real russa, imagine. Ele preparou as refeições para o primeiro voo para Nova York.

Jetsite: Tudo isso parece um sonho hoje, não?
E talvez tenha sido, mesmo. Era uma época de ouro, os aviões, o glamour, as rotas. Os passageiros também, viajavam elegantemente vestidos, eram muito cordiais conosco. Bem, eram esses os famosos anos dourados da aviação. Mas havia o outro lado por trás do glamour: nós nos matávamos de tanto trabalhar, coisa que hoje seria impossível.

Jetsite: Como assim?
Pelas leis trabalhistas. Naquela época, a gente subia no Constellation em Porto Alegre e ia com ele até Nova York, mais de 24 horas de viagem, com múltiplas escalas. Claro que a gente se revezava e não eram tantos passageiros como seria depois no Boeing 707, mas mesmo assim era um trabalho árduo. Por exemplo, como o serviço era muito caprichado, os copos de cristal e a louça era fina, todo esse material de comissaria tinha que ser lavado durante as escalas por nós mesmas, imagine. Não tínhamos um empresa cuidando do serviço de comissaria como hoje é comum. A gente descia, lavava a louça e trazia de volta para o avião para a etapa seguinte. A gente fazia isso quase sempre na escala de Belém. Dá para imaginar isso hoje?

Jetsite: A senhora fala com carinho dessa fase, dessa aeronave. O Constellation é seu avião preferido?
É um deles. O meu preferido mesmo é o Electra.

Jetsite: Bom, então somos dois!
Ah, não me diga! Bem, o Electra. (pausa, pensativa) Bem, quem não tem saudade dele? Galleys espaçosas, muito espaço e conforto para os passageiros, avião seguro. Nunca houve nada igual.

Jetsite: A senhora rapidamente se destacou entre suas colegas. Foi logo promovida a instrutora?
Não foi tão logo assim, não. Foi somente em novembro de 1957. Seu Berta era muito rígido, exigente. Não era fácil ser promovida. Como falava alguns idiomas, sobretudo o alemão, isso acabou pesando. Me enviaram para um curso na Swissair em Zurique. Seu Berta admirava muito duas empresas: a Lufthansa e a Swissair, que ele considerava cmo modelos perfeitos de organização e sobretudo, bons serviços. A Varig tinha acordos de cooperação com essas empresas, e então surgiu essa oportunidade.

Jetsite: O que lhe marcou nessa fase?
Tudo. Isso mudou minha carreira, me fez crescer muito. A Varig era assim: ela investia nos funcionários. Fazia de nós todos, sem distinção - técnicos, comissários, pilotos, mecânicos, agentes de aeroporto - fossemos quem fossemos, a Varig fazia de nós profissionais muito bem preparados. A companhia sempre teve orgulho de seu time e nunca, nunca economizou na formação de seus quadros.

Jetsite: Parecida com a própria Swissair, que sempre primou pela excelência, não?
Exato. Lembro-me de meu primeiro dia. Madame Faust era a instrutora. Após me receber, convidou-me a entrar em uma sala vazia, saiu e me deixou lá por alguns minutos, sozinha. Tão logo ela fechou a porta, vi que havia uma vassoura caída no chão. Fui até ela, peguei-a e a encostei em um canto da sala. Dois minutos depois, ela entrou, sorriu para mim e disse algo assim: "Parabéns, pois você já passou no primeiro teste: mostrou que tem iniciativa e humildade: agachou-se para pegar a vassoura no chão. Gente com esse tipo de atitude vai longe nessa carreira".

Jetsite: E longe a senhora foi, não? Quantos países a senhora conhece?
Ah, perdi a conta. Mais de 100, certamente.

Jetsite: Ao voltar ao Brasil, como foi essa nova fase?
Bem, eu voava e dava os cursos, participava ativamente do treinamento. Cuidava disso com muita dedicação e acho que isso caiu muito bem para o elevado nível de exigência de Seu Berta. Ele me pediu para ajudar a montar a escola e os cursos de treinamento para tripulantes da Varig. Seu Berta queria que fosse uma escola modelo na região, no mínimo a melhor da América do Sul, e que pudesse até servir para treinar comissários de outras empresas. Foi nessa fase que veio a idéia de projetar salas de curso em forma de anfiteatros, de maneira a permitir que todos na classe pudessem ver de forma clara, sem obstruções, aquilo que se pretendia ministrar.

Jetsite: A senhora morava então no Rio?
Não, eu morei até 1980 em Porto Alegre. É claro que, na minha profissão, isso não existe: a gente mora mesmo no avião e no aeroporto. Passava muito tempo no Rio, claro, mas sempre que podia voltava para meu lar, para meu cantinho em Porto Alegre. Só depois de 1980 é que fixei residência no Rio de Janeiro. Quem não gostava disso era Seu Berta. Ele queria que eu me mudasse de uma vez para o Rio, sobretudo depois de 1961, quando compramos a Real e recebemos mais jatos.

Jetsite: Anos depois, quando a Varig assumiu as linhas da Panair, essa pressão deve ter aumentado, não é?
Ah, bem, depois do caso da Panair, o seu Berta queria que eu fosse para a Europa e ficasse uns tempos por lá, ajudando no treinamento e na organização do serviço. Aceitei, não tinha como recusar, pois seria apenas por alguns meses. Só que ao me preparar para essa temporada, fui fazer exames médicos em Porto Alegre e para minha surpresa, durante o exame detectaram um câncer. Por sorte, em fase muito inicial. Comecei o tratamento imediatamente, e talvez não tivesse escapado se o problema não tivesse sido detectado tão no comecinho.

Jetsite: Que incrível. Pode-se dizer que a senhora foi salva pela compra da Panair?
Acho que sim, pois não teria feito aquele exame e o câncer não teria sido detectado tão cedo se não tivesse que passar uma temporada na Europa.

Jetsite: Dona Alice, o Seu Berta sabia que a Panair iria fechar antes daquele fatídico dia de fevereiro de 1965?
Sabia, claro. Mas não sei dizer o quão antes. O que posso dizer é que ele me chamou apenas dois dias antes do fechamento da Panair (ocorrido em 10/02/1965) e me disse mais ou menos assim: "Dona Alice, a Panair vai fechar, nós vamos ficar com as rotas para a Europa, eu quero você lá cuidando do serviço. Te prepara que você vai passar uma longa temporada por lá. Mas isso é segredo, não comente com mais ninguém na companhia. Ninguém, entendeu? Ninguém." Ele foi bem enfático ao me proibir de falar sobre o tema. E, claro, não falei com ninguém.

Jetsite: Então a senhora não foi para a Europa?
Não, tive que ficar aqui para o tratamento, lutando contra a doença. Deu certo, ainda estou por aqui (risos).

Jetsite: E depois, quando curada, a senhora resistiu a mudar para o Rio como Berta queria?
Mais ou menos. Quando disse que queria continuar no Sul, por razões, pessoais, Seu Berta ficou uma fera e disse que iria me demitir. E ia mesmo. Bem, para que isso não acontecesse, capitulei e uma parte do meu tempo foi dedicada a cuidar do padrão de serviços nos hotéis Tropical, que a Varig herdou quando assumiu o controle da Real naquele mesmo ano de 1961. Viajava para todas as cidades onde tínhamos hotéis: Iguaçú, Manaus, João Pessoa.

Jetsite: Então a senhora cuidava do treinamento da Varig e dos hotéis da rede Tropical. E ainda voava?
Ah, sim, tudo isso ao mesmo tempo. Fiquei na Rede Tropical até 1984. Era corrido, mas eu sempre fui solteira e isso facilitava. Talvez até por isso nunca tenha me casado. Ou melhor, me casei foi com a carreira, com a Varig mesmo.

Jetsite: E desse casamento brotaram muitas profissionais que voam até hoje se consideram suas filhas, ou no mínimo suas discípulas.
Bondade sua. O que fazia era minha obrigação. Eu era severa, eu sei, mas muita gente por aí, quando me encontra, me agradeece e me diz: (imitando voz de menina) "Dona Alice, obrigada, aprendi muito com a senhora". Eu sou apaixonada pelo que faço, sabe, e exigia que as meninas fossem também.

Jetsite: Nesse nosso ramo de atividade, a indústria de serviço, não há outra maneira de garantir qualidade, não acha?
Claro. Ser exigente não era um capricho. Era um método. Melhor que nós reparássemos em cada detalhe, pois é isso que o passageiro faz. Então, melhor que nós corrigíssemos tudo ou quase tudo antes que os passageiros o fizessem. Eu lhe digo: só assim é que a Varig poderia competir contra as gigantes Air France, Lufthansa, PanAm.

Jetsite: Depois que a senhora se aposentou na Pioneira, continuou voando. Fale sobre isso.
Ah, eu não conseguiria ficar parada, no chão, de jeito nenhum. Em 1989, fui convidada a participar de um vôo à base da Marinha na Antártida, a Estação Comandante Ferraz. Fiquei abismada com o serviço de bordo, que era composta apenas por umas caixinhas com sanduíches frios, chocolates e torradas.?Foi conversar com as autoridades, pois acreditava que era necessário que servissem comida quente, chá, café, bebidas reconfortantes. Isso foi negado, pois, segundo o que me disseram, a FAB não tinha dinheiro para instalar fornos nos C-130 Hércules.? Não me conformei e, depois de muita luta, consegui muita coisa, muitos equipamentos para a galley, quase tudo de graça. Em retribuição, fui convidada a ser comissária de bordo oficial desses vôos antárticos ?e, de quebra, ganhei o apelido de Tia Alice.

Quantas viagens à Antártida a senhora fez?
Cento e sessenta. Semana que vem farei a viagem de número 161. É uma missão cansativa, mas fico muito, muito feliz fazendo isso. A cada viagem a gente ganha um brochezinho, um pinguinzinho de metal. Veja isto. (Levanta-se e traz um boné com 160 pinguins pregados). Não é incrível? Enquanto a saúde permitir e a FAB quiser, lá vou para o Polo Sul!

Jetsite: Dona Alice, tudo em sua carreira, em sua vida, me parece simplesmente incrível. São 55 anos ininterruptamente trabalhando como comissária, o que deve ser um recorde mundial. Para concluir, o que a senhora tem a dizer sobre a Varig?
Ah. Bem, a Varig? (Emociona-se). A Varig foi a melhor universidade que eu cursei e sei que falo por muita gente. Praticamente tudo que aprendi na vida foi na Varig. Ela foi não apenas uma universidade, como uma verdadeira mãe para todos nós. A companhia cuidava do bem estar de seus funcionários, que sabiam retribuir à altura. Foi um sonho, um sonho que se desmanchou. (Pausa) Mas vamos lá, o que vale é o que vem pela frente. Semana que vem vou voar para a Antártida e isso é o que importa.

 

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