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VC-10 the finest
O povo britânico pode ser reconhecidamente esnobe.
Muitas vezes, existem razões que até justificariam esse
orgulho desmedido. Em outras ocasiões, esta
característica soa injustificável. Um bom exemplo é o
desempenho do Reino Unido na construção de jatos
comerciais. Com algumas raras exceções, nenhum modelo
produzido nas ilhas pode ser considerado como um
verdadeiro sucesso comercial. Tanto é assim que nos 53
anos em que jatos foram produzidos no Reino Unido,
(1949-2002) se somarmos TODAS as aeronaves comerciais a
jato produzidas lá, mal chegamos à casa dos 900. Ou
menos que a linha de produção do Boeing 757.
Sem perder a pose, os bretões costumam dizer que
produziram o First (Comet) o Fastest (Concorde) e o
Finest, o Vickers VC-10. E é esse jato esguio, elegante,
adorado por tripulantes e passageiros e paradoxalmente,
extremamente mal-sucedido comercialmente, que
analisaremos agora no jetsite.
Origens de um Puro-Sangue
A Vickers era uma tradicionalíssima empresa britânica de
armamentos, máquinas e até mesmo de navios. Fundada no
princípio do século XX, construiu aviões famosos nas
duas Grandes Guerras, como o Bombardeiro Vimy. Isso sem
falar em um dos famosos jatos-bombardeiros do pós
guerra, o Valiant.
E foi atendendo à uma solictação da Royal Air Force que
a empresa começou a desenvolver um quadrijato de
transporte, o V1000 ou VC-7 em sua projetada versão
civil. parecia um Comet ampliado, com quatro motores
enterrados na base das asas. O primeiro começou a ser
construído, mas sofreu nas mãos de um governo indeciso:
em 1955 o protótipo foi abandonado meses antes do
primeiro vôo.
A BOAC, British Overseas Airways Corporation,
antecessora da British Airways, enviou aos fabricantes
em 1956 especificações de um novo jato capaz de competir
com os Boeings 707, que entrariam em serviço dois anos
depois, mas já demonstravam sua superioridade em relação
aos Comet 4 por ela encomendados.
O novo jato seria usado primordialmente nas rotas para a
Ásia, África e América do Sul, que apresentavam os
maiores desafios operacionais: aeroportos altos, em
climas quentes, com pistas curtas. Neles, um 707 não
seria capaz de operar. Portanto, o novo jato deveria ser
feito quase sob medida para estas rotas. Enquanto esse
novo jato era projetado, a BOAC viu-se obrigada a
comprar 17 Boeings 707-400 para as rotas do Atlântico
Norte.
Silent, Swift, Superb
O avião foi sendo definido pelos engenheiros da Vickers
com toda a bagagem ganha no projeto V1000, e de olho nas
qualidades e defeitos do grande rival, o 707. O novo
avião teria 4 motores na cauda, permitindo uma asa mais
limpa e capaz de produzir toda a sustentação necessária
para operar nas curtas pistas do Terceiro Mundo. Os
quatro motores na cauda fariam a cabine ficar
extremamente silenciosa, originando assim a definição ue
nasceu logo após o seu primeiro vôo (lá vem a soberba
bretã): Silent, Swift, Superb (silencioso, rápido,
soberbo).
O grande potencial do desenho da asa foi ainda mais
aperfeiçoado com a instalação de flaps tipo Fowler e
slats por todo o borde de ataque. Isto se traduziu em
menores velocidades de pouso e decolagem (em média 20
nós a menos que os aviões da mesma categoria). Soluções
inovadoras, como a adoção de galleys e banheiros
modulares, que permitiam mudança de posição no layout da
cabine, foram outra inovação no projeto. A BOAC gostou
do que viu e antes do primeiro vôo, em abril de 1957
encomendou 35 unidades ao preço de 1.57 milhões de
libras esterlinas cada, contrato formalmente assinado em
14 de janeiro de 1958. Foi também nesse período que a
Vickers apresentou o projeto do VC-10 200, conhecido
posteriormente como Super VC-10, com fuselagem alongada
para até 180 passageiros. A BOAC mostrou interesse em
converter algumas encomendas de VC-10 Standard em Super
VC-10, o que acabou de fato ocorrendo (no final, foram
12 standards e 20 Supers entregues).
No ar, em serviço
O primeiro protótipo do VC-10 voou pela primeira vez em
29 junho de 1962 a partir das instalações da Vickers em
Brooklands/Weybridge. O protótipo G-ARTA usou pouco mais
de 700m de pista e ganhou os céus majestosamente,
impulsionado pelos 4 motores Rolls-Royce Conway. Com
capacidade para 123 passageiros, o novo e elegante jato
finalmente era uma realidade.
Entrou em operação comercial com a BOAC em 19 de abril
de 1964. Outros operadores da primeira série do VC-10
foram a Ghana Airways, Nigeria Airways e a British
United ou BUA (mais tarde British Caledonian) que operou
com o tipo no Brasil em seus vôos partindo de Viracopos
e Rio de Janeiro rumo ao Reino Unido. Outros operadores,
já com unidades de segunda mão, foram a Gulf Air, Air
Malawi e os governos de Oman e dos Emirados Árabes
Unidos. A East African Airways tornou-se a segunda e
última compradora dos Super, ao receber cinco unidades.
Não tardou para que o VC-10 atraísse também a atenção da
Royal Air Force, que encomendou um total de 14 unidades
híbridas: a fuselagem da primeira séria casada com a asa
e motores da série Super VC-10, conhecidos como V1106
Mk1. Além destas unidades originais, a RAF adquiriu
diversos Super VC-10 de segunda mão no final da década
de 70, e até hoje os mantém em operação como cargueiros
e/ou aviões de reabastecimento em vôo. No total, foram
produzidas 8 versões diferentes. Apesar de suas
excelentes qualidades, não garantiram ao VC-10 um grande
sucesso nas vendas: apenas 54 unidades foram construídas
até 1970, incluindo-se todas as aeronaves de todas as
versões.
O VC-10 teve uma das estruturas construtivas mais
resistentes da história da aviação, até para evitar que
tragédias como a do Comet 1 voltassem a ocorrer.
Desenhado originalmente para voar 10.000 horas, quando
deixaram o serviço ativo da British Airways, já contavam
com mais de 17.000 horas de vôo em média, sem precisar
de qualquer reforço estrutural. Mas toda essa excelência
de projeto veio com um preço: seu consumo. Em 1965, a
BOAC estimou que os VC-10 gastavam por hora de vôo 1.830
galões de combustível contra 1.795 dos 707. Essa
diferença aumentava para quase 20% quando comparava-se
rotas de longo alcance.
Superb: o fator VC-10
O quadrimotor da Vickers foi uma aeronave muito popular
junto ao público viajante. Era bastante comum na época
encontrar passageiros trocando seus vôos, somente para
poder voar nesta magnífica máquina. Seu silêncio era
impressionante e suas poltronas, maiores e mais
distantes do que as encontradas nos jatos concorrentes,
garantiam um forte apelo que compensava seus custos de
operação mais elevados que seus competidores yankees.
Em meados dos anos 60, operando com os dois tipos nos
vôos transatlânticos, a BOAC conduziu uma pesquisa de
prefererência do público viajante, comparando o VC-10 ao
Boeing 707: Com 70% dos votos, venceu o jato britânico,
que confirmou o orgulho de sero o "Finest". Mesmo com o
advento dos jatos de fuselagem larga, os 747, DC-10 e
Tristar, era comum a solicitação de passageiros pedindo
vôos nos VC-10. E note que nenhum dos VC-10 foi equipado
com sistemas de entretenimento de nenhum tipo: nem
canais de música nem filmes a bordo!
Fim de carreira: os VC-10 hoje
No começo dos anos 80, apenas a Ghana Airways e a
British ainda operavam com o tipo. Com a entrega dos
L-1011 para a British, os VC-10 chegaram ao fim da
linha: em 29 de março de 1981, o Super G-ASGF pousou em
Londres procedente de Dar-Es-Salaam e Larnaca. Foi o
último vôo comercial com o tipo. Quatro vôos de
despedida saíram lotados no dia seguinte, levando
entusiastas para voar sobre Manchester, Prestwick e
Filton, berço dos aviões.
Não que isso tenha sido o fim da linha. A Royal Air
Force comprou toda a frota, adaptando-os para uso em
missões de transporte e reabastecimento aéreo. Ainda
hoje, de tempos em tempos, os VC-10 podem ser vistos em
alguns aeroportos brasileiros, através de vôos da RAF
que necessitam de escalas técnicas, em suas longas
missões de reabastecimento para a frota inglesa nas
ilhas Falklands.
No último dia 29 de junho último, o VC-10 fez 40 anos de
existência: quatro décadas antes decolava de Weybridge o
primeiro protótipo do VC-10, considerado por muitos um
dos melhores e mais belos jatos comerciais já
construídos. Sua aposentadoria definitiva já tem data
certa: será ao final de 2008. Ficará para sempre nossa
saudade deste clássico e maravilhoso jato, lembrado para
sempre como sendo Silent, Swift, Superb.
Gianfranco Beting