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Cruzeiro do Sul: uma estrela em nossos céus
Fritz Hammer era um empreendedor. Fosse como piloto,
homem de vendas ou político, estava sempre adiante de
seus pares. Sua inquietação e dinamismo se
transformariam numa das melhores e mais tradicionais
empresas aéreas brasileiras durante quase meio século: a
Cruzeiro do Sul.
Fritz Hammer mudara-se de sua Alemanha natal para fundar
na Colombia a SCADTA, precursora da Avianca, a mais
antiga empresa aérea em operação nas Américas. Com a
fundação da Deutsche Luft Hansa em 1926, Hammer percebeu
a oportunidade de representá-la num mercado ainda mais
promissor que a Colômbia - o Brasil. Em pouco tempo era
o representante do Condor Syndikat, oficialmente
constituído em 01/12/27 no Rio de Janeiro. Eram 4 sócios
alemães e mais o Conde Pereira Carneiro, o único
brasileiro na administração da empresa.
No princípio de 1928 começaram os vôos propriamente
ditos, após o período inicial de constituição da
companhia e afagos nas autoridades estabelecidas.
Inicialmente, um único Junkers G24 voava duas vezes por
semana entre o Rio de Janeiro e Porto Alegre. Eram nada
menos que 4 escalas entre as cidades, num percurso voado
a 170km por hora, que levava 11 horas para ser
completado. Logo o Syndikat expandiu seus serviços até
Salvador, utilizando-se de quatro Junkers F-13 para 4
passageiros.
As rotas foram ampliadas com serviços até Natal, RN. O
hidro-avião Dornier Wal ocupava-se da função e à
despeito de seu prefixo, P-BALA, voava na velocidade de
uma WAL (baleia em Alemão): morosos 160 km por hora.
Mesmo assim, era muito mais rápido que os vapores que
percorriam a costa atlântica.
A década de 30 viu a Luft Hansa, em estreita colaboração
com o Sindicato Condor, estabelecer uma linha que nascia
na Alemanha e prosseguia até Santiago do Chile,
transportando correio e passageiros. Esse serviço
utilizava várias aeronaves e tripulações, que iam
passando sua carga de aeronave para aeronave, fazendo
escalas até em navios aeródromos no meio do oceano. Em
cinco dias e meio, a mais longa linha comercial aérea de
todo o mundo era completada. Um feito, no mínimo, épico.
Fritz Hammer achou bastante tediosa sua vida de
executivo de aviação de uma empresa bem constituída. Em
busca de aventuras, foi para o Equador criar mais uma
empresa aérea. Morreu pilotando por lá um Junkers W-34.
Expansão e a tragédia da Guerra
Por aqui, o Condor só fazia crescer. Em 1933, uma nova
rota até Cuiabá foi inaugurada. O Brasil começava a ser
desbravado - pelo ar. Em 1934, os primeiros vôos
internacionais chegaram a Buenos Aires. Em 1935, até
Santiago do Chile e no Brasil, as linhas costais
chegaram até Fortaleza. Dois anos depois, até Carolina,
no Maranhão. Os hidroaviões foram substituídos pelos
Junkers Ju-52. A operação atingiu excepcionais índices
de regularidade e pontualidade: nada menos de 98,8 e
99,8%, respectivamente. Em 1939, vieram diretamente da
fábrica dois quadrimotores Focke Wulf FW 200 Condor, na
época verdadeiros jumbos para 26 passageiros. Operavam
na prestigiosa linha para Porto Alegre e Buenos Aires.
Veio então a Segunda Guerra. Peças de reposição para
aeronaves alemãs tornam-se difíceis de conseguir. Até
mesmo a Standard Oil recusava vender combustível à
filial da Luft Hansa. O Governo Vargas, inicialmente
simpático ao Eixo, mudou de posição no meio do Conflito
e veio para a banda do Aliados. O Syndicato Condor
percebeu ser fundamental a mudança de nome, afastando-se
de suas origens alemãs.
Nascia em 16/01/1943 a designação Serviços Aéreos
Cruzeiro do Sul Ltda. Os diretores e até mesmo
funcionários mais graduados de origem alemã foram
perseguidos e presos. A administração da empresa foi
passada ao advogado José Bento Ribeiro Dantas, secundado
pelo diretor técnico Leopoldino Amorim.
A dupla de brasileiros contava com uma frota sem peças
de reposição, que visivelmente atraía os piores
sentimentos anti-germânicos que dominavam o país. Sem
alternativa, os dois foram para a América reequipar a
empresa, e o fizeram em grande estilo: primeiro vieram 4
Douglas DC-3, em 1943. A frota seria padronizada em DC-3
e DC-4 e enfrentaria a competição de aproximadamente 30
empresas aéreas domésticas, criadas no pós-guerra.
Encomendaram também 3 Douglas DC-4, então o maior avião
terrestre em operação, para com eles iniciar a linha
para os Estados Unidos -outro feito exemplar da empresa
que até alguns meses antes era vista como filial da
Gestapo...
Crescendo após a Guerra
A Cruzeiro, já internacional, ganhou o direito de servir
Porto Rico, New York e Washington. Recebeu em 1946 os 3
Douglas DC-4, mas exigiu subvenção governamental para
operar nesta rota. Trinta vôos de "reconhecimento" foram
feitos até 1949. Em 1948, finalmente foram aposentados
os Focke Wulf FW 200, usados na rota Rio-Buenos Aires. A
subvenção não saiu e os DC-4 foram trocados por 4
Convair 340, o primeiro deles chegando apenas em março
de 1954.
Na luta doméstica, a Cruzeiro engoliu duas operadoras da
região sul do Brasil, a gaúcha SAVAG e a TAC-Transportes
Aéreos Catarinenses. A frota foi ampliada para 4 Convair
340, 5 Convair 440 e dez do modelo 240 (usados)
adquiridos junto à American Airlines. Para transportar
cargas, vieram nove Fairchild C-82 Packet. A Cruzeiro
crescia no Brasil e e consolidava-se na América do Sul.
A era do jato
A expansão da frota da empresa, no início dos anos 60,
apontava para o caminho do jato puro. Assim, Ribeiro
Dantas foi à França, de onde voltou com o contrato de
compra de 4 Caravelles VI-R, entregues a partir de
janeiro de 1963. Foram empregados com grande sucesso nas
rotas-tronco domésticas e em vôos para Buenos Aires. Em
1965, com o "fechamento" da Panair, decretado pelo
Governo Militar, a Cruzeiro herdou mais 3 deste tipo,
além de alguns Catalinas, mantidos em operação nas rotas
amazônicas, que serviam nada menos que 52 cidades na
região. Além disso, desse loteamento perpetrado do
espólio da Panair, vieram também algumas rotas na
América do Sul.
A frota somava 3 Catalinas, 15 Convairs, 25 Douglas DC-3,
2 Fairchild C-82 e 7 Caravelles. Mas os DC-3 e Convairs
necessitavam de urgente substituição. Foram encontrar o
substituto no Japão: em 4 de setembro de 1967, a
Cruzeiro recebeu o primeiro de 12 YS-11A, operados até
1975.
Em 1968, a Cruzeiro encomendou 3 Boeings 727-100 com 114
lugares, iniciando serviços com os mesmos em 03/01/1970
nas rotas Rio-Brasília e Rio-Buenos Aires. Em 1969,
Leopoldino Amorim asssumiu a presidência, deixada vaga
pela morte de José Bento Ribeiro Dantas, presidente da
empresa desde 1942.
A constelação se apaga
A década começou mal para a empresa. O fato é que
vivíamos o auge dos "Anos de Chumbo", sob o jugo de um
governo militar pouco disposto ao diálogo. Uma das
consequências era a absoluta regulamentação da avição
comercial brasileira, sob o comando de ferro da FAB. Em
retrospecto, observa-se uma lenta manobra de
consolidação das operadoras em torno de um par de
empresas. Tarifas, horários, frequências, tudo tinha de
ser aprovado pelo Poder Concedente. Às Concessionárias,
as empresas aéreas, restava lamber coturnos ou torcer
pela Divina Providência, para que esta bafejasse com
suas benesses os pobres operadores aqui nesta terra.
Ou não? Cruzeiro, Varig, Vasp e Sadia/Transbrasil tinham
cotas máximas de mercado. Crescer além disso, nem
pensar. Mas em aviação, os insumos e despesas são sempre
em dólar. A Varig e em menor escala a Cruzeiro ainda
recebiam em moeda forte. As rotas internacionais da
Cruzeiro eram apenas sul-americanas. Já a Vasp e Sadia
ficavam mesmo é com receita apenas em... cruzeiros.
O fato é eram grandes os desafios para as empresas. A
Cruzeiro encontrava crescentes dificuldades para
competir com a Varig, Vasp e com o crescimento da
Sadia/Transbrasil. Os Caravelles, em uso desde 1963,
precisavam de substituição e Leopoldino foi à Boeing,
onde encomendou 6 Boeings 737-200 por US$ 43,5 milhões.
O Governo passou a achar que havia companhias aéreas
demais no Brasil, sobretudo após a crise do Petróleo de
1973. Mandou avisar que ajudaria apenas 3 empresas. E,
de preferência, duas. Numa dança das cadeiras, os
empresários do setor passaram a ver quem ficaria de
fora. Uma fusão de Cruzeiro e Sadia/Transbrasil faria
sentido, equilibrando o jogo. Casamento do roto com o
esfarrapado, diziam alguns. VAsp e saDIA juntas? Iria
dar no quê a fusão? Vadia?
Assim, escreveu-se mais um capítulo de nossa aviação
comercial, que para a Cruzeiro teve sabor de epílogo,
posfácio, réquiem. Em 22/05/1975 a Cruzeiro foi
adquirida pela Fundação Rubem Berta, controladora da
Varig. Deixava de existir uma das pioneiras de nossa
aviação. Os Caravelles foram imediatamente desativados e
os YS-11 colocados à venda, ficando meses no CEMAN de
Porto Alegre.
Fantasmas
A marca e o nome, porém, foram mantidos artificialmente
até 1997, quando os últimos 737-200 da Cruzeiro foram
pintados nas cores da Varig. Desde 1975, a Varig
utilizou-se dos acordos bilaterais e direitos de tráfego
da Cruzeiro nas linhas internacionais, o que motivou a
manutenção do nome. Os códigos de serviços, para efeitos
de direitos de tráfego, foram também mantidos. Também
ajudava o fato de, perante o público, contribuir com a
impressão de haver mais uma opção de transporte aéreo.
Nas reuniões junto ao Poder Concedente, iam os
representantes da Varig E da Cruzeiro, dois votos para
cada decisão.
Mas não paravam aí as vantagens de se operar com duas
marcas. Em 1980, por exemplo, a Varig recebeu seus dois
primeiros Airbus A300-B4 nas cores da Cruzeiro. Ou
ainda, em 8 de dezembro de 1982, um MD-80 foi arrendado
para voar experimentalmente nas linhas domésticas, por
três meses, nas cores da Cruzeiro (PP-CJM). Tudo que
fosse para teste, usava a marca-fantasma da Cruzeiro do
Sul.
Os últimos traços da empresa desapareceram a partir de
setembro de 2001, quando os 4 Boeings 737-200
remanescentes (CJN/CJR/CJS/CJT) foram desativados. Mas
em agosto de 2002, um deles, o PP-CJT, retornou à ativa,
motivado pelos problemas de frota que atingem a Varig. O
que, em última análise, não deixa de ser irônico.
Gianfranco Beting