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Comet: trunfo e tragédia
Mais de 50 anos após seu primeiro vôo, em 1997 o último
Comet fez seu derradeiro vôo na Inglaterra. Este foi o
primeiro jato comercial a entrar em operação, uma
revolução que na época assombrou o mundo. Mas os cometas
passam pelos céus de forma breve. E Como sempre ocorre
na aviação, cada salto tecnológico, cada avanço
conquistado é escrito com o sangue dos pioneiros. Não
foi diferente na trágica história do Comet, que o
jetsite traz agora.
Cometas são corpos celestes que sempre impressionaram a
humanidade. Sua fulgurante aparição sempre encheu os
homens de assombro, e em tempos remotos, de profundo
terror; suas aparições eram consideradas omens, maus
agouros associados ao fim dos tempos.
Por mais mágicos que pareçam, por mais espetaculares que
sejam, têm vida breve. Seu destino é sempre o mesmo:
terminam seus vôos de forma drástica, espetacular, na
maioria das vezes desintegrando-se ao entrar em
atmosferas, desaparecendo na imensidão ou chocando-se
contra outros corpos celestes.
E foi justamente esse o nome do primeiro jato comercial
a entrar em serviço, o de Havilland (assim mesmo, com
"d" minúsculo) Comet. Orgulho maior da indústria
britânica, uma das pioneiras da propulsão a jato, o
elegante quadrijato debutava no mundo da aviação para
reescrever a história do transporte aéreo. Quiz o
destino que o papel do Comet na história fosse muito
mais conhecido pela tragédia do que pelo triunfo, como
você lerá a seguir. E, de fato, a passagem do Comet no
cenário da aviação comercial foi exatamente como a dos
cometas: rápida, fulgurante, deixando um rastro de
promessas quebradas e vidas perdidas.
A batalha dos tempos de paz
Durante a Segunda Guerra, os Estados Unidos e a
Grã-Bretanha, aliados contra o Eixo, concordaram em
racionalizar os esforços de guerra no sentido de evitar
eventuais duplicidades e esforços paralelos. Um
entendimento preliminar reservava aos yankees a
responsabilidade de construir transportes e
bombardeiros, enquanto aos bretões ficava a tarefa de
projetar e construir caças e aeronaves de ataque.
Qualquer um sabe que a regra não foi extamente seguida à
risca, com notáveis exceções de ambos os lados. Seja
como for, em linhas gerais, ela foi mais ou menos
respeitada.
Assim, ao final do conflito, os norte-americanos tinham
enorme experiência no projeto e construção de
quadrimotores de longo alcance. Esse conhecimento seria
colocado nos céus e nos mercados nos anos seguintes,
garantindo uma quase total hegemonia aos fabricantes
yankees no mercado de aeronaves comerciais.
A indústria aeronáutica alemã, antes do conflito uma das
mais avançadas do mundo, fora bombardeada à extinção. A
francesa, esfacelada sob anos de ocupação, sofria de uma
carência de recursos e mentes capazes de maiores
realizações. A soviética ainda teria muito a aprender,
embora já soubesse - e muito bem - fazer grande
aeronaves militares.
Restava então a briga entre dois aliados nos tempos do
conflito: o mercado comercial seria disputado palmo a
palmo entre a metrópole e a antiga colônia, entre a
Velha Albion e a Terra dos Livres e dos Bravos. Londres
e Washington sabiam que o domínio dos ares continuava
tão fundamental para seus países quanto fora nos anos da
Guerra.
Londres assistia aos milhares de DC-3, DC-4 e dezenas de
Constellation, excedentes de Guerra, tomando os mercados
de todo o mundo para sí. E, ousadia suprema, até mesmo
os países membros da Commonwealth, sob sua histórica
influência, estavam equipando suas frotas pela primeira
vez com aeronaves norte-americanas. This must come to an
end deveriam pensar os nobres bretões entre chávenas
deenglish tea.
Uma nova forma de propulsão
Nos anos iniciais do conflito, os dois lados
experimentavam novas formas de propulsão capazes de lhes
garantir a supremacia nos ares. Os alemães, com Werner
Von Braun, mais tarde ele mesmo um dos maiores
responsáveis pela conquista da Lua, e os ingleses,
liderados por Sir Frank Whittle, que desenvolveu a
turbina Ghost, testada em vôo pela primeirra vez em 15
de maio de 1941. Outro pioneiro foi Frank Halford, que
desenvolveu a turbina Halford H1, mais tarde melhorada e
rebatizada de Havilland Goblin. Um novo desenvolvimento
destes motores resultaria no de Havilland Ghost, a
turbina que iria colocar o mundo da aviação num novo
patamar.
O famoso Comitê Brabazon, criado pelo Governo de Sua
Majestade para coordenar os esforços da indústria
aeroespacial britânica no Pós-Guerra, recomendou em 1943
o desenvolvimento de uma aeronave tentativamente chamada
de Type IV. Esta deveria ser capaz de cruzar o Atlântico
Norte carregando uma tonelada de correio. Logo depois,
foi sugerido que se estudasse também a possibilidade de
transportar 20 passageiros nesta mesma aeronave. A
resposta estava nas pranchetas da de Havilland, que já
flertava com a idéia de colocar em uso comercial seus
motores Ghost.
Nasce um cometa
Em 1943, acreditava-se que a nova aeronave seria capaz
de dar cabo da missão equipada com apenas três Goblins,
cada um capaz de produzir pouco mais de 3.000lb de
potência. Mesmo assim, a autonomia não passaria de 700
milhas, bem menos do que o necessário para cruzar o
Atlântico. A entrada em cena do Ghost, com 5.000lb de
empuxo, já prometia mais.
Em 1945, a configuração básica da aeronave já
apresentava uma conformação mais ortodoxa, tendo
abandona os planos iniciais, que apontavam para uma
configuração semelhante ao caça de Havilland Vampire.
Então, a aeronave teria 24 passageiros e quatro motores
Ghost.
A configuração então passou a ser revolucionária para a
época: asas enflechadas em 40º, sem estabilizadores
horizontais, apenas uma pequena cauda. Três protótipos
foram construídos numa escala de aproximadamente metade
do jato comercial. Batizado de DH108, o novo jato
decolou nas mãos de Geoffrey de Havilland Jr, filho do
fundador da empresa e piloto de provas da companhia. Em
27 de setembro, tentando bater o recorde de velocidade
num dos protótipos, Geoffrey Jr perdeu o controle da
aeronave, morrendo num desastre que devastou para sempre
seu pai.
John "Cat`s Eyes" Cunningham foi escolhido para ocupar
seu lugar. O desenvolvimento prosseguiu e culminou na
configuração que efetivamente voaria, com quatro motores
instalados nas raízes das asas, que livres de estruturas
de fixação dos motores, ficavam aerodinamicamente
excepcionalmente limpas.
Primeiros vôos
Em 1949, as primeiras informações sobre o novo jato
começaram a ganhar corpo na imprensa. Até então,
jornalistas e órgãos de imprensa foram mantidos longe de
Hatfield, sede da de Havilland. Era importante manter o
máximo de segredo sobre a nova aeronave, de forma a
surpreender os competidores do outro lado do Atlântico.
Em abril de 1949, numa publicação interna, a de
Havilland Gazette, o Comet como já era chamado, foi
anunciado, bem como as 14 compras do modelo inicial,
Comet 1, colocadas pela BOAC e pela BSAA, esta mais
tarde incorporada à primeira.
O novo jato era assombroso sob qualquer aspecto: voaria
mais rápido e mais alto do que qualquer outro. De fato,
sua introdução significava um salto tecnológio só
superado pelo Concorde 20 anos depois. De fuselagem
pressurizada, seu ar seria renovado a cada três minutos,
uma novidade. Sua temperatura seria controlada por outro
sistema revolucionário, o ar condicionado. Hoje pode
parecer simples, mas na época isso soava a ficção
científica.
Com uma tripulação técnica de 4 e capacidade para 36
assentos em duas classes ou 48 em classe econômica, o
Comet 1 nascia para revolucionar a aviação. E seu
primeiro vôo finalmente deu-se as 18:00 do dia 27 de
julho de 1949, sem a presença da imprensa, que não foi
avisada, aliás, foi informada que o primeiro vôo seria
ocorreria "apenas quando as condições climáticas
estivessem ideais"... O vôo secreto provocou a ira dos
jornalistas, que em alguns casos, como o correspondente
do The Times, jurou que jamais escreveria o nome de
Havilland novamente. A promessa foi mesmo cumprida,
evidenciando mais uma vez que, desde a mais tenra idade,
a inapetência da indústria aeronáutica britânica ao
marketing é desconcertante.
Depois de seu "vôo secreto", um exultante Cunningham
desembarcou para afirmar que o avião havia sido
excepcional e seria um retumbante sucesso. Dias depois,
no Show Aéreo de Farnborough de 1949, 80.000 assombrados
expectadores acompanharam os rasantes e passagens em
alta velocidade do esguio jato.
Um programa de testes sem maiores sustos prosseguiu, com
o Comet voando para diversas áreas do mundo,
promovendo-se, como de fato era, como a mais nova
maravilha aeronáutica. A turnê foi um sucesso, atraindo
interessados em diversas áreas, inclusive no Brasil,
onde a Panair assinou uma carta de intenção para a
compra de quatro Comet 1 com opção para mais dois Comet
3 ao preço de 450.000 libras esterlinas cada. Em 22 de
janeiro de 1952 o Comet 1 de prefixo G-ALYS tornou-se o
primeiro jato comercial do mundo a ser certificado. O
planeta preparava-se para entrar na era do jato.
Cometas cruzam os céus
Dois de maio de 1952. O Cmte. Majendie empurra as
manetes do G-ALYP na pista 10R de Heathrow, que ganha
altura rapidamente, iniciando a longa viagem rumo a
Johannesburg, onde o Comet pousaria após múltiplas
escalas 23 horas e 37 minutos depois. Três meses depois,
nada menos de 8 Comets voavam nas cores da BOAC. Um ano
depois, os Comets da BOAC atingiam Tokyo. Com encomendas
chegando de todas as partes do mundo e aeronaves voando
na Canadian Pacific e Air France, os súditos da recém
entronada Elizabeth II pareciam ter motivos de sobra
para comemorar a vitória na luta pelo domínio dos céus.
Se os yankees tinham mais volume, os bretões agora
tinham o jato, e com ele a dianteira tecnológica. Até
mesmo a Pan American converteu-se e encomendou 3 novos
Comet 3, uma versão de maior alcance então sendo
desenvolvida. Esta era a primeira compra de uma aeronave
inglesa por uma empresa aérea norte-americana, e era a
azeitona no Dry Martini da de Havilland.
Isto até o vôo de entrega de um Comet 1A, que fora
entregue à Canadian Pacific, em 2 de março de 1953.
Matriculado CF-CUN, o Comet, durante a decolagem de
Karachi, recusou-se a sair do solo e explodiu ao final
da pista, matando seus 11 ocupantes. Era uma cópia exata
de um incidente ocorrido semanas antes em Roma com o
G-ALYZ da BOAC, por sorte sem perda de vidas. Havia algo
de estranho e desconhecido nas características de
pilotagem do jato.
No dia 2 de maio de 1953, as 14:00 GMT, os Comet
celebraram um ano de serviço ativo. Exatamente duas
horas depois, e minutos após decolar de Calcutá, o
G-ALYV entrou numa nuvem de cumulus nimbus (CB), durante
sua subida em rota. Nunca mais saiu dela,
despedaçando-se em dezenas de partes que caíram ao solo,
junto com seus 43 ocupantes.
Um manto de suspeitas começava a se formar na comunidade
aeronáutica. Semanas depois, a de Havilland e as
autoridades inglesas exoneraram o avião de qualquer
culpa, reafirmando que o Comet não tinha apresentado
problemas, e sim seus pilotos, que não souberam operá-lo
corretamente: ou por não manterem a atitude correta, nos
dois casos durante as decolagens. No caso de Calcutá, o
Cmte. da BOAC foi também considerado o culpado pelo
acidente, por ter colocado o Comet dentro de um CB, que
afirmavam as atutoridades, derrubaria qualquer avião.
O mistério do Yoke Peter
Em 10 de janeiro de 1954, o Comet G-ALYP, o mesmo que
inaugurara os vôos comerciais, nesta data pilotado pelo
Cmte. Gibson, decolou de Roma rumo à sua base em
Heathrow. Subindo em rota, a tripulação do Yoke Peter
(como era então o código fonético para designar as
letras Y e P) anunciou ao centro de Roma que passara os
26.000 pés e em seguida indagou por rádio ao comandante
de outro vôo da BOAC, um Argonaut que voava ligeiramente
à sua frente, sobre as condições meteorológicas. Sua
chamada pelo rádio ficou marcada como o último som
gravado em sua cabine. A frase, interrompida ao meio,
selou o destino do jato.
Pescadores trabalhando próximo à ilha de Elba, escutaram
um estrondo no céu e ao olharem para cima, viram uma
chuva de metal e fogo caindo ao mar. Dias de buscas
revelaram alguns dos destroços do G-ALYP e os restos de
seus 35 ocupantes. O Comet desintegrou-se em pleno ar e
desta vez, não havia nenhum CB nas proximidades, ao
contrário, era um lindo e fresco dia de inverno no
Meditterrâneo.
Em 11 de janeiro, os Comet foram interditados para vôo,
só voltando aos céus em 23 de março com quase 60
modificações feitas preventivamente. Duas semanas
depois, em 8 de abril o Comet G-ALYY decolou de Roma.
Desta vez voando na proa sudeste, tinha por próxima
escala o Cairo. O Cmte. Mostert, da South African, que
arrendara o jato da BOAC, confirmou sua alitude e
posição as 20:08. Minutos depois, voando no través de
Stromboli numa noite clara e sem formações, o Yoke Yoke
desintegrou-se no ar e, aos pedaços, mergulhou no
profundo mar Partenope. Quatro dias depois, o Ministério
dos Transportes caçou a licença de operação do tipo. O
Comet 1 não voaria mais.