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BAC 1-11: um curto voo ao sucesso
Um jato estrangeiro que conseguisse entrar no
competitivo mercado americano, lançado ao mesmo tempo
que o DC-9, e que mesmo assim atraisse clientes não
deveria ser um mau produto. Principalmente com uma
sobretaxa alfandegária de mais de 10% agregada ao valor
final. Se esse jato conquistasse clientes importantes,
como a American Airlines, então sua qualidade estaria
sacramentada perante os operadores yankees e, como
conseqüência, da comunidade aeronáutica internacional. E
foi justamente essa a vitoriosa trajetória dos BAC 111,
mais conhecidos por One-Eleven, que fez dos vôos curtos,
sua especialidade, um atalho para o sucesso.
Jatos para rotas curtas? Porque não?
Em meados dos anos 50, a aviação mundial atravessava um
momento único. De um lado, a indústria britânica
assistia perplexa o seu orgulho maior, o Comet, obrigado
a permanecer no chão após uma série de acidentes fatais.
Do outro lado do Atlântico, os fabricantes
norte-americanos Boeing, Douglas e Convair apostavam
tudo em novos jatos quadrimotores, desenhados para
etapas médias e longas. A idéia era fabricar uma
aeronave a jato capaz de atravessar o Atlântico Norte,
sem escalas, lotada de passageiros.
Mas... e os vôos menos prestigiosos, mas que até hoje
são os que forram a barriga das empresas aéreas, as
ligações de menos de 1.500km de distância? Estas
pareciam fadadas, ao menos por um período, a continuar
sendo servidas por uma maioria de modelos desenhados
antes da Guerra ou por alguns poucos turbohélices como o
Viscount ou, embora ainda nas pranchetas, o futuro
Lockheed Electra.
Do outro lado do Canal da Mancha, a indústria francesa
pensava diferente. Nascia naquela época o maravilhoso
Caravelle, lançado em 1956 com uma encomenda da Air
France para 12 unidades. O elegante jato francês foi
pioneiro em várias soluções de engenharia, como a
colocação dos motores próximos à cauda e a escada de
acesso traseira, situada sob o estabilizador vertical.
Seu sucesso foi tamanho, que à exceção da KLM, Lufthansa
e BEA, todas as outras empresas de bandeira européias
utilizaram-no, desde que a Air France inaugurou serviços
com ele em 6 de maio de 1959.
Hunting 107
Neste mesmo 1956, a Hunting Aircraft Ltd decidiu
desenvolver um modelo a jato, batizado H107. Seria um
bimotor, com suas turbinas posicionadas na cauda, como o
Caravelle. Seria menor, com capacidade para até 48
passageiros em fileiras de 2 + 2 assentos, capaz de voar
a 400 nós e com autonomia de 1.000 milhas. Estas
características eram ditadas mais pelos motores
disponíveis então do que por consideraçõe
mercadológicas.
Mas a indústria aeroespacial britânica, desde sempre
vivendo de forma simbiótica com o governo de seu país,
experimentava as idas e vindas naturais a qualquer
empreitada mais voltada à política do que ao mercado.
Enquanto os fabricantes norte-americanos faziam aviões
para suas linhas aéreas, os bretões pareciam desenhar
aeronaves para seus políticos. Adivinha qual indústria
foi mais bem sucedida?
Vamos poupar o leitor das intricadas passagens e
manobras de bastidores, que culminaram com a
centralização da capacidade produtiva aeroespacial
britânica em dois grupos. Vale porém comentar que a
Hunting Aircraft foi engolida pelo conglomerado que veio
a ser conhecido por British Aircraft Corporation, ou BAC.
Anos precisos foram perdidos nos gabinetes. E o projeto
do H107 foi deixado no meio dessas contendas.
Finalmente, a Hunting, uma mera subsidiária do grupo,
foi autorizada a recomeçar seus estudos. Nesse momento,
um novo e promissor motor a jato estava sendo projetado:
o Rolls Royce Spey. Em restrospecto, foi o que salvou a
aeronave.
Nasce o BAC 111
O Spey podia oferecer mais de 10.000 libras de potência
contra as 5.200 dos motores Bristol Orpheus,
originalmente escolhidos para o H107. Pesquisas feitas
junto a clientes potenciais resultaram em mudanças
significativas, a maior delas no diâmetro da fuselagem,
que agora comportaria 5 poltronas por fileira. Na cauda,
a configuração cruciforme para a colocação dos
estabilizadores horizontais, idêntica a dos Caravelles,
foi abandonada em favor de configuração em forma de T,
que teria dramáticas consequências, como você lerá
adiante.
O tamanho da aeronave também aumentou para acomodar até
69 passageiros. Em março de 1961, o modelo era conhecido
como BAC 107 e foi considerado para ser produzido como
um irmão menor desta nova aeronave movida por um par de
Speys, que então foi chamada oficialmente de BAC 111, ou
como acabou sendo mesmo conhecido, BAC One-Eleven. A
falta de interessados nos BAC 107, movido por dois
Bristol Orpheus, levou ao cancelamento do projeto,
concentrando-se a empresa em lançar apenas o BAC 111.
Em 9 de março de 1961 a BAC anunciou oficialmente o
lançamento do BAC 111, ao mesmo tempo que comunicava a
primeira venda de 10 aeronaves para a British United
Airways (BUA), então dirigida por Freddie Laker. Sir
George Edwards, presidente da BAC, foi além: anunciou o
interesse sério de três empresas aéreas
norte-americanas, Continental, Ozark e Frontier,
interessadas em comprar o novo jato. Um excelente
começo, embora logo depois, estas três tenham comprado
os DC-9. Quem comprou mesmo o BAC 111 foi a Braniff
(8+6) e a American Airlines (15+10).
Pagando o preço do pioneirismo
O desenvolvimento de versões mais potentes do Spey
possibilitou o aumento do número de assentos para até 89
passageiros em todas as versões, exceto o BAC 111-500,
de capacidade ainda maior. Detalhes como a instalação de
uma turbina auxiliar de potência (APU) foram muito bem
aceitas pelos operadores, que contariam com uma aeronave
extremamente ágil no solo, um fator fundamental para
quem opera trechos curtos. O APU daria total
independência de apoios de solo, e o reabastecimento
seria feito por um único ponto, à razão de 410 galões
por minuto, agilizando o tempos de escala, estimados
pela BAC, no caso de uma escala intermediária de rota,
em 6 minutos de solo, fato comprovado várias vezes nos
anos seguintes.
Em 20 de agosto de 1963, o primeio protótipo, o BAC
11-200 matriculado G-ASHG, decolou de Hurn num vôo
inaugural de 27 minutos. Sessenta aeronaves haviam sido
encomendadas até então, e o futuro para o novo jato
parecia ser brilhante.
No dia 22 de outubro, o protótipo decolou de Wisley para
uma série de vôos para medir e calcular os efeitos da
mudança de CG (centro de gravidade) sobre o desempenho
da aeronave. Este é um teste absolutamente comum, mas
fundamental para a operação segura das aeronaves.
Pilotado por Dickie Rymer e Mike Lithgow, o Hotel Golf
iniciou mais um teste com o CG totalmente movido para
seu limite traseiro e flaps configurados em 8º. A
aeronave foi deliberadamente colocada em baixa
velocidade, para propositalmente estolar, isto é, perder
a sustentação mínima para continuar voando. Com o nariz
num pronunciado ângulo cabrado, os tripulantes reduziram
a velocidade até o One-Eleven paticamente parar no ar.
Foi quando aconteceu o que nenhum engenheiro previu. A
aeronave de fato estolou, mas com sua cauda em T, entrou
num estado que impossibilitou sua recuperação. O fluxo
de ar que passava pelos profundores, era insuficiente
para abaixar o nariz da aeronave e tirá-la de sua queda.
O fenômeno passaria a ser conhecido comoDeep Stall.
Numa impressionate prova de profissionalismo e
sangue-frio, após lutar contra a queda, o co-piloto
Lithgow abriu os microfones e passou a descrever pela
fonia para os técnicos da empresa, o comportamento da
aeronave. Mesmo sabendo-se perdido, Lithgow, com sua voz
ligeiramente alterada pela certeza do fim iminente,
narrava sua luta aos engenheiros atônitos, descrevendo
seus comandos e a falta de resposta enfrentada. O jato
bateu com grande velocidade vertical e praticamente
nehuma velocidade horizontal no solo, matando todos os
ocupantes: Rymer, Lithgow e mais 5 técnicos que
monitoravam o vôo.
Sua bravura valeu uma condecoração póstuma, mas mais
importante, levou a modificações que tornam hoje as
aeronaves com cauda em T mais seguras.
Em serviço
Os ensaios prosseguiram até que em 9 de abril de 1965, o
primeiro vôo comercial com um One-Eleven foi realizado,
quando o G-ASJJ, nas cores da BUA, voou entre Gatwick e
Genova. Sua presença aumentou em 49% o tráfego nas rotas
em que o novo jato substiuiu os Viscount. Em 4 de
janeiro, foram feitos os primeiros vôos domésticos à
jato no Reino Unido, entre Londres, Belfast, Edinburgh e
Glasgow. Em 11 de março de 1965, a Braniff recebeu seu
primeiro jato, em 15 de maio a Mohawk recebeu seus dois
primeiros e a Aer Lingus inaugurou os seus serviços em 3
de junho com a aeronave regsitrada EI-ANE. Com a entrada
em serviço, a BAC concentrou-se em melhorar o projeto.
Foram então feitas as versões seguintes do One-Eleven,
os modelos 300, 400, 475 e 500.
Versões: os novos jatos
A BAC foi gradativamente melhorando o desempenho das
aeronaves, através da incorporação de motores mais
potentes. Foram necessários também reforços estruturais
e em alguns casos, a instalaçnao de tanques de
combustível de maior capacidade. Assim, respectivamente,
os pesos máximos de decolagem das versões 200, 300, 400
e 475 foram 78.500, 87.000, 87.000 e 98.500 lb. A carga
paga: 17.595, 22.278, 21.413 e 21.527lb. Foram vendidos
58 da série 200, 9 da 300, 69 da 400, 10 da 475 e 85 da
série 500, uma versão com a fuselagem alongada.
O One-Eleven 400 foi o primeiro a ser utilizado no
Brasil. Em 22 de junho de 1967, a Vasp anunciou a compra
de dois firmes e três opções do modelo 422. Ambos foram
entregues em 19 de dezembro de 1967 (PP-SRU e PP-SRT)
entrando em serviço em janeiro de 1968. Neste ano, os
dois BAC One-Elevens da Vasp perfizeram nada menos que
24% dos RPKs (demanda) de toda a empresa. E olhe que a
frota total da Vasp naquele ano era de 38 aeronaves. Um
deles voava Congonhas-Galeão-Belém-Manaus e retornava. O
outro saía de Fortaleza às 07:30 da manhã e voava para
Porto Alegre via Recife-Salvador-Galeão-Congonhas,
chegando à capital gaúcha as 15:05 antes de retornar. A
jornada terminava em Fortaleza as 22:55, onde a aeronave
pernoitava.
A Força Aérea Brasileira também operou dois: foram
batizados aqui de VC-92, FAB 2110 e FAB 2111 e eram do
modelo 423. Sua compra foi anunciada em 19 de novembro
de 1967. As aeronaves só foranm entregues em 15 de
outubro de 1968 (2111) e 13 de maio de 1969 (2110).
Operaram até 1976, quando foram vendidas à Ford UK, onde
receberam respectivamente as matrículas G-BEJM e G-BEJW.
O modelo 475 era ligeiramente modificado em relação ao
400: apesar de ter a mesma fuselagem, usava as asas
maiores e motores mais potentes da versão definitiva do
One-Eleven, a série 500. O 475 foi produzido para operar
em pistas curtas e em climas quentes, apresentando o
melhor desempenho dentre todos os modelos. Também nesta
época foi formada uma associação com um grupo romeno,
interessado na produção dos One-Elevens sob licença na
Romênia. Foi criada a empresa Rombac, que ao final do
programa, construiu nada menos que xxx One-Elevens 560
no país.
Série 500: o jatão
No começo dos anos 60, três jatos disputavam entre sí o
promissor mercado de etapas curtas: o DC-9, o 737 e o
BAC 111. A despeito do One-Eleven ter sido o primeiro
dos três competidores a entrar em seviço, foi o último a
efetivamente ter uma versão alongada, de maior
capacidade. Por essas e por outras é que não alcancou o
sucesso de seus concorrentes.
Seja como for, somente em janeiro de 1967 foi que a BEA
- British European Airways - encomendou 18 unidades do
modelo 510, configurados para 97 passageiros. Seu custo
operacional por assento-milha é 15% menor que dos
modelos 400. Sua fuselagem foi alongada em quase 5
metros sobre a versão 400, o que permitiu mais quatro
fileiras de assentos. As asas também aumentaram e são
quase 2 metros mais longas nas pontas. A acomodação pode
chegar a 119 passageiros, embora fosse mais comum
utilizar 99 assentos com 34 polegadas de espaço entre as
fileiras, bem mais do que as 31-32 polegadas que são
padrão hoje em dia. As turbinas escolhidas foram as
Speys-512-14DW, com 12.550 lb de empuxo. Em 30 de junho
de 1967 o protótipo G-ASYD voou e as entregas começaram
para a BEA em 29 de agosto de 1968.
Foi justamente esta versão que atraiu as atenções de
Omar Fontana, presidente da Sadia Transportes Aéreos.
Omar foi à Inglaterra e assinou a compra de duas
aeronaves em 1969 e mais uma depois. Seus jatos, do
modelo 520, deveriam se entregues em outubro, mas
dificuldades com o financiamento das mesmas atrasaram o
programa e a Sadia optou por receber uma aeronave
inicialmente em caráter de leasing. O jato foi o PP-SDP,
arrendado à Austral da Argentina, que chegou em setembro
de 1969. Finalmente, em 15 de outubro veio o PP-SDQ. O
segundo foi entregue em 31 de dezembro (PP-SDR) e o
terceiro, PP-SDS, em 23 de setembro de 1972.
Inicialmente recebidos com 86 assentos em duas classes,
voavam pela costa e via Brasília entre Porto Alegre e
Manaus. Fizeram enorme sucesso e foram apelidados pela
empresa de "Jatões". Em junho de 1972 a Sadia
transformou-se em Transbrasil e adotou cores vibrantes
em sua identidade visual. O primeiro a ser pintado assim
foi o PP-SDS, nas cores amarelo-mostarda e vermelho,
logo apelidado de "salsichão". No ano seguinte, a
empresa comprou 3 usados da British Midland (SDT, SDU,
SDV) entregues a partir de março de 1973.
Entre fevereiro e dezembro de 1974, mais um foi
arrendado nas cores básicas da British Caledonian (PT-TYY)
e ainda ao final de 1974, vieram mais dois, arrendados
da Court Line (PT-TYX e PT-TYW). No total, foram 13
One-Elevens usados no Brasil: 9 Série 500 usados pela
Transbrasil, dois Série 422 pela Vasp e dois Série 423
pela FAB. Além destes, alguns One-Elevens da Austral
foram vistos por aqui operando vôos charter.
Em sua operação no Brasil, nenhum grave acidente
ocorreu, embora o PP-SDQ tenha sido perdido durante um
pouso em Congonhas em 2 de fevereiro de 1974. Não houve
vítimas fatais, apenas alguns feridos. Em 1977, foi a
vez do PP-SDS fazer um pouso duro em Viracopos e ficar
meses lá, até se vendido. E foi isto: no mais, uma
carreira sem incidentes, que durou pouco mais de 10
anos. O PP-SDU foi o último a deixar a Transbrasil,
saindo do serviço ativo da empresa em 1978.
Com 233 aeronaves produzidas entre 1963 e 1982 (sem
contar as aeronaves romenas), o One-Eleven converteu-se
num sucesso de vendas, especialmente considerando-se as
dificuldades políticas que inibiram seu pleno
desenvolvimento. Ainda operado em vários países de
terceiro mundo, o jato britânico deixou saudades para
toda uma geração de brasileiros, que como eu, se
encantavam ao vê-los nas vistosas cores da Transbrasil,
enfeitando nossos aeroportos e céus.
Suas decolagens com peso máximo em Congonhas tinham de
ser ajudadas com o recurso da injeção de água nos
motores. Quando isso acontecia, principalmente no vôo
que saía por volta das 15 hoas de Congonhas, os motores
produziam um ruído estrondoso e fumaçeira notável. Nas
tardes quentes de verão, os "BAC" como eram chamados por
seus pilotos, usavam cada metro da pista de Congonhas
para decolar. Aos olhos de um garoto apaixonado por
aviões, aqueles jatos coloridos, barulhentos,
carismáticos eram o máximo. Bons tempos...
Gianfranco Beting