EDITORIAL  |  REPORTAGENS  |  FLIGHT REPORTS  |  AEROPORTOS  |  AERONAVES  |  COMPANHIAS AÉREAS  |  ACIDENTES

 

Concorde: BA9010


Domingo, 8 de setembro de 1996, amanheceu com o clima típico de um dia de verão britânico: todos. Esquentava, saía sol, garoava. Para mim, porém, era um dos dias mais lindos de minha vida: finalmente voaria no Concorde, aeronave suprema, absoluta.

Não, mais que isso: zênite do poder empreendedor e criativo humano. Ele lidera e os outros seguem, há mais de 30 anos. Claro que já poderíamos voar mais rápido e mais alto. Mas interesses econômicos, economia de escala, orgulhos nacionais e um oil-shock colocaram por terra os competidores do supersônico anglo-francês. Tivemos só um a lhe fazer sombra, o Tupolev 144, que hoje, sabe-se, foi "inspirado" no Concorde. E os norte-americanos tentaram fazer o seu, especialmente a Boeing, que quase construiu o protótipo do seu Boeing 2707.

Mas o fato é que sua imitação soviética, o Tu-144 e jocosamente apelidado de "Concordski" ficou poucos anos em serviço, relegado à inexpressiva rota Moscou - Almaty. Já o Concorde esteve em serviço ativo até 2003 em duas das mais prestigiosas rotas internacionais, ligando New York a Londres e Paris.

Seja como for, desde sua entrada em serviço em 1976, o Concorde deixou o resto da aviação para trás. Numa indústria que existe para ganhar tempo, ninguém oferecia mais vantagens que o elegantíssimo quadri-reator. Considerado por muita gente a mais bela máquina feita pelas mãos humanas, o fato é que, sempre, o Concorde virou cabeças por onde voou. Como uma linda dama, nunca passava desapercebida: suas linhas, sua pose alta sobre a pista e, quando seus quatro reatores explodiam num alarido frenético dosafterburners em aceleração, aí então não ficava um só cristão indiferente. Este Flight Report traz agora as impressões de voar nessa máquina.

Concord ou Concorde?

Dizem os historiadores que os bretões quase desistiram da parceria com os gauleses quando chegou a hora de definir a grafia do nome da máquina. Seja como for, oshabituées do Concorde desenvolveram uma relação íntima com o supersônico e com seus frequentadores mais freqüentes. Eram artistas, empresários, milionários, amantes, herdeiros. Eles ganhavam tempo, "arriving before leaving" como apregoava a British Airways na monstruosa réplica postada bem na entrada de Heathrow. Eles formavam um grupo distinto entre nós terráqueos: o supersonic jetset. Desenvolveram até um jargão próprio, uma espécie de "concordês", com algumas regras de uso exclusivo dessa tribo. Por exemplo: não existia artigo antes do nome da aeronave. Dizia-se assim: "I`ll fly Concorde tomorrow". Ou: "I reserved a seat on Concorde". Melhor ainda se você usasse como verbo: "I will Concorde to New York tomorrow" ou "I just Concorded last evening".

Esse grupo podia ser heterodoxo em tudo, menos numa coisa: nos bolsos, invariavelmente fundos. Sim, porquê para voar Concorde, era preciso tê-los cheios: uma ida e volta transatlântica saia por mais de US$ 12.700,00 com as taxas incluídas. E como fiz eu para Concordear? Certamente não foi pagando a soma acima.

Supersonic Lunch

Estava em Londres a serviço. Uma reunião foi adiada, o que representaria ficar mais 5 dias na cidade, fim-de-semana no meio. Lendo o The Times, topei com um anúncio da Goodwood Travel: "Supersonic Lunch": por 500 libras, aprox. US$ 1.000,00, era possível decolar de Heathrow no domingo seguinte, subir até 50.000 pés, voar ao dobro da velocidade do som, sobrevoar a Islândia e retornar duas horas depois para o aeroporto de partida. Ah! O almoço estava incluído na conta. A jogada era simples: a British Airways aproveitava estes vôos para treinar seus tripulantes mais novos, pagando parte do combustível vendendo os assentos para essa operadora turística. Liguei trêmulo para a Goodwood: haveria lugares? Sim, como não, respondeu-me a simpática atendente. E já foi aliviando meu cartão de crédito...

Chegou o grande dia. O grupo era bastante diferente do clã habitual. Nenhum Warren Buffett, Sir Paul McCartney, Liz Hurley. Havia professoras aposentadas, um casal comemorando 25 anos de união, um pai levando o filho. E eu, brazuca, com o coração na boca, tentando controlar minha ansiedade e parecer o mais cool possível. Bobagem, ninguém estava nada cool. Uma atmosfera de convescote pairava na sala de espera.

Após a curta viagem de ônibus, paramos na pista ao lado do G-BOAA. Descendo, o grupo de 100 pessoas (lotação completa) já foi espocando flashes da aeronave imponente, estacionada no final do Pier 3. Abaixando a cabeça na pequena porta, entrei. Claustrofóbicos parariam aí: a cabine é mais apertada do que a de um F-27. Sentei-me na janela, poltrona 16A. O Cmte. David Rowland deu as boas-vindas, enquanto os passageiros se acomodavam.

Em seu speech, Rowland deu algumas informações interessantes, especialmente aos leigos, que eram a grande maioria: falou sobre o ruído dos afterburners oureheaters como preferem os britânicos. Explicou também que, devido ao vôo ser mais curto que o habitual, estaríamos levando apenas 35 toneladas de combustível e, como não havia bagagem, a aceleração seria melhor percebida do que num vôo regular. Êba!

Portas fechadas, engoli em seco: vai começar. Com a partida prevista para as 13:00, as 13:30 o trator de push-back libertou o "Alfa-Alfa" de sua imobilidade. Um minuto depois e a primeira turbina Rolls Royce Olympus ganha vida: o ruído interno é bem mais alto do que eu imaginava. Finalmente, com os quatro reatores girando, o Concorde começa a taxiar as 13:38. Nossa pista para decolagem foi a 27L, o que garantiu um longo taxi. Obervando pela janela, era bárbaro notar que até mesmo o pessoal de pátio parava o que estava fazendo para ver Concorde passar. O Comandante aproveitou e explicou com mais detalhes o funcionamento dos reheaters, e avisou que o ruído seria intenso. Indeed.

Alinhados, Rowland e sua tripulação abriram as manetes as 13:45. O G-BOAA gritou e num espasmo saiu de seu estado de inércia, ansioso para retornar ao seu elemento natural. Nós passageiros ficamos grudados nos assentos: a aceleração mais parecia de um caça do que de uma aeronave comercial. Fascinado, vi pela diminuta janela a terra rodar. Concorde ganhou altura como uma flecha, subindo vertigionosamente até que os reheaters foram desligados, um procedimento usual para reduzir o ruído em terra. Sim, porquê na cabine não há como escapar do barulho, mais alto do que se poderia supor. Assim que passamos da costa irlandesa, o G-BOAA foi autorizado a acelerar para além da velocidade do som.

Entrando para o Clube Supersônico

Sim, chegou o grande momento: iria eu me tornar um terráqueo supersônico: observei através do Machmetro instalado na cabine, a velocidade aumentar até chegar a... Mach 1.00. Nenhuma emoção, vibração, ruído. Tão emocionante quanto jogar crapô com o cunhado num dia de chuva na praia.

Mas o fato é que sem nos darmos conta, Concorde nos levava além da barreira do som. O almoço foi servido, acompanhado por Dom Pérignon: uma salada fria de salmão e aspargos, frutas frescas, queijos, crackers e licores. Tea, of course, e um brandy. Olhava para fora, na esperança de ver a curvatura da terra. Não vi (pode ter sido Dom Pérignon demais). Fui visitar a cabine, mas como era um vôo de instrução, não fiquei mais do que 30 segundos. Roubei tudo que havia no assento como recuerdo, para em seguida, pelo alto falante, saber do chefe de cabine que poderíamos levar o que quiséssemos como recordação...

Voávamos a 56.000 pés e a temperatura externa marcava 58ºC negativos. Dentro da cabine, o ruído era intenso: prestando atenção, descobri que ele é muito mais forte por seu componente aerodinâmico: o barulho é muito mais do ar passando pela aeronave do que pelas turbinas. E a mais de 2.000 por hora, a fricção não é nada desprezível. Tanto é assim que Concorde crescemais de 10cm durante o vôo em razão da dilatação dos metais provocada pelo calor. Os tripulantes de cabine costumam prender uma caneta num vão que se cria atrás do painel da cabine de comando, quando Concorde está lá no alto. Quando o avião desacelera e esfria, antes do pouso, a caneta fica presa no vão que encolhe, sendo retirada pela próxima tripulação. Interessante, não?

Mas o fato é que tudo que é bom dura pouco. Após sobrevoar a Islândia, Rowland fez um grande 180º e tomou o rumo de volta a casa. No começo da tarde, vimos Londres desfilar abaixo de nós. E, como Concordes não tem flaps, usam o ângulo de ataque pronunciado para aumentar a sustentação, efetivamente transformando toda a asa num gigantesco flap. É por isso que ele adota aquela atitude maravilhosa ao descer, necessitando de um nariz pivotante para oferecer visão frontal aos tripulantes.

As 15:05, Concorde tocou o solo, de volta à sua base. Recebemos os diplomas pelo vôo supersônico, uma taça de cristal e uma maquete. Muito simpático. Desembarcamos e eu particularmente jurei para mim mesmo que voltaria a voar Concorde algum dia. Promessa que não consegui cumprir, a experiência ficou para mim como Concorde ficou para a aviação: único.

Avaliação: notas vão de zero a dez.

1-Reserva: Nota 10.
Cordial e instantânea. Pagamento via cartão.
2-Check-In: Sem nota.
Diferenciado, feito fora do aeroporto, no hotel onde o grupo se juntou, por se tratar de um charter.
3-Embarque: Nota 8.
Prejudicado por ser através de ônibus. Atmosfera de convescote compensou.
4-Assento: Nota 6.
Apertadíssimo, mas suportável para vôos de até 4 horas.
5-Entretenimento: Nota 5.
Nada de vídeos. Apenas 5 canais de música (mais não deve caber).
6-Serviço dos comissários: Nota 8.
Simpático, eficiente, atrapalhado por passageiros nos corredores.
7-Refeições: Nota 10.
Simples e de bom gosto, muito bem apresentada.
8-Bebidas: Nota 10.
Dom Pérignon a vontade e o que mais quisesse.
9-Necessaire: Nota 10.
Não foi distribuída. Em compensação, foi dado um kit especial de recuerdo.
10-Desembarque: Nota 10.
Festivo e rápido: não havia malas para entregar.
11-Pontualidade: Nota 10.
Prontos on-time mas atrasado por tráfego. Só que o vôo poderia ter demorado mais!

Nota final: 8,7

Comentário final: se racionalmente a nota é 8,7, em meu coração a nota é 10. Voar no Concorde era um sonho antigo. Vai ser uma das cenas do filme da minha vida, naquela seção que irá acontecer dentro da minha cabeça, segundos antes da morte.

Gianfranco Beting

Topo da página