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Adeus Vasp
A Vasp como a gente conheceu já não existia mais. No
chão, parada, nos últimos tempos a empresa vinha
tentando sobreviver de forma humilhante, decolando
apenas quando seus cansados jatos atingiam ao menos 50%
da ocupação. Desse jeito, talvez fosse melhor mesmo
apagar a luz.
O ônus, no entanto, é caro, muito caro. Milhares de
trabalhadores sem perspectiva e amparo; milhares de
passageiros sem transporte, com bilhetes que, graças à
boa vontade das concorrentes sobreviventes, poderão ser
aceitos - embora jamais venham a ser compensados pela
aéreas, pois a Vasp não existe mais.
Uma empresa que tantas coisas fez, que tantos céus voou.
Trouxe a primeira aeronave a turbina ao Brasil, o
Vickers Viscount; depois, foi pioneira na utilização do
YS-11, que batizou de Samurai, e que entrou na história
de nossa aviação pelo conforto que apresentava em
relação aos equipamentos que substituiu; trouxe o
primeiro 737, o PP-SMA, na ativa de 1969 a 2004; colocou
o 727-200 em operação nas rotas domésticas; lançou um
plano de financiamento famoso, o Credi-Sem, uma das
primeiras ações concretas que democratizaram um
pouquinho o transporte aéreo; e, reconhecida pela sua
excelente manutenção, cuidou dos jatos 737 do GTE, que
transportaram os presidentes de nossa república. Ou
ainda, da memorável campanha publicitária de 1974, que
começava com o inesquecível jingle Atenção, você com
essa ficha na mão, dirija-se ao portão, embarque nesse
avião...
Incrível que, com esse legado indiscutível, a empresa
tenha tido um fim tão inglório. O trabalho de milhares
de colaboradores não garantiu a sobrevivência da
empresa. Também, não é para menos: os que os
funcionários da Vasp, ao longo de décadas, faziam de
manhã, de tarde e de noite pela empresa em quase todos
os aeroportos do Brasil, apenas servia para rolar as
muitas mazelas de sucessivas administrações políticas,
desastradas, irresponsáveis. De noite, quando esses
"executivos", ou melhor, essas aves de rapina iam para
casa contar seus tostões, os milhares de abnegados e
apaixonados funcionários tratavam de fazer a empresa
voar, compensando as falcatruas e desmandos do horário
do expediente. Foram eles que literalmente carregaram a
Vasp nas costas.
Claro, a empresa teve grandes presidentes, homens sérios
e comprometidos com resultados. Mas teve também uma laia
de gente a dirigí-la que faria tipos como um PC Farias,
por exemplo, parecer um trombadinha. Sempre lembro que
até mesmo um ex-locutor de rádio ocupou a presidência da
empresa. Até os milagres têm limites.
Mas em 1990, assumiu o comando a última administração da
empresa. Com inegáveis e amplamente comprovados laços
com a camarilha da República das Allagoas de Fernandinho
Collor & Cia Illimitada, a empresa que até então
conseguia, aos trancos e barrancos, manter a proa e a
altitude, entrou numa descendente irreversível.
Uma administração anacrônica, irresponsável,
extremamente infeliz sob todos os aspectos, dos
comerciais aos políticos, dos operacionais aos
estratégicos: incompetência elevada ao estado da arte.
Poucas vezes veremos, na história empresarial do Brasil,
uma combinação tão virulenta de despreparo com
arrogância, de desonestidade com despeito. Falo porque
vi e vivi isso bem de perto.
A Vasp morreu em 1990. Isso que ainda voava pelos nossos
céus já era outra coisa. Então me entristeço, mas não me
surpreendo. Me despeço, como amante da aviação, dessa
Vasp que eu conheci quando garoto. Dos DC-3, Samurai, DC-6B
cargueiros, dos BAC 1-11, 737-200 e 727-200 que ocupavam
minha imaginação e enchiam minhas retinas, quando
passava tardes inteiras na varanda de Congonhas. O silvo
estridente dos quatro motores Dart dos Vickers Viscount,
acelerando para iniciar o taxi, a poucos a metros de
meus maravilhados ouvidos, fica como réquiem para essa
empresa que já não existia mais.