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Eu sou do tempo...
Outro dia, constatei horrorizado: menores de idade não
devem se lembrar de ter visto os Electra em operação. O
cálculo é simples, ao levarmos em conta que as primeiras
memórias costumam ficar registradas aos três ou quatro
anos de idade e que os saudosos quadrimotores da Varig
pararam de voar no Brasil há quase quinze anos.
Incrível, mas toda uma geração de jovens entusiastas,
hoje com menos de 18 anos, ou não lembra ou tem apenas
fiapos de memórias dos magníficos Lockheed Electra.
A constatação é perturbadora. Rapidamente, em rodas de
conversa, percebo que sou jurássico. Já pontuo cada
frase com a expressão "Eu sou do tempo que". Quer ver?
Eu sou do tempo em que se achava grafite no miolo do
lápis, não no muro da escola. Em que se cruzava as
pernas sentado na poltrona da classe econômica dos
aviões. Que companhia aérea era Varig, carro era Fusca,
caderneta de poupança era Haspa. Que leite vinha em
garrafa e manteiga, em lata. Eu sou do tempo em que se
cultuava o intelecto, não o corpo. Em que os ignorantes
tinham vergonha, não orgulho. Sou do tempo em que as
pessoas liam livros, não a revista Caras.
Eu sou do tempo em que, numa tarde no terraço de
Congonhas, se podia ver aviões fabricados pela Boeing,
Convair, Curtiss, Douglas, Fairchild Hiller, Lockheed,
Embraer, Handley Page, Hawker-Siddeley, British Aircraft
Corporation, Vickers, Sud Aviation, NAMCO e Fokker.
Hoje, se eu ficar um mês em Congonhas, só vou ver ATR,
Airbus, Fokker e Boeing.
Eu sou do tempo em que as aeromoças eram moças e os
passageiros eram velhos. Eu sou do tempo em que o taxi
para o aeroporto levava 15 minutos e o vôo para o Rio
levava 50. Hoje, é uma hora e 35 minutos no taxi, 35
minutos na fila do check-in, 35 na fila do raio-x, 35
minutos taxiando e, ufa, 35 minutos de vôo até o Rio.
Eu sou do tempo em que os times tinham uniforme um e
dois. Eu sou do tempo em que os melhores jogadores
brasileiros jogavam no Brasil. E que a gente sabia a
escalação do próprio time (Leão, Eurico, Luis Pereira,
Alfredo, Zeca, Dudu, Ademir da Guia, Ronaldo, Leivinha,
César Maluco e Nei ) E dos adversários. Eu sou do tempo
em que, no futebol, o que valia eram os gols, não as
jogadas.
Eu sou do tempo em que se voava para os Estados Unidos
de Varig ou Pan Am. Tempo em que havia terracinhos nos
aeroportos, tempo em que máquina de raio-x era coisa de
hospital, não de aeroporto. Eu sou do tempo em que a TAP,
a British Airways, a Pan Am e a Aeroperú voavam ao
Brasil com os Lockheed Tristar. Eu sou do tempo em que a
Varig pousava em cinco continentes. Eu sou do tempo em
que os F-14 Tomcat eram o máximo.
Eu sou do tempo em que japona era peça de vestuário, não
uma menina oriental com mais de um metro e oitenta. Eu
sou do tempo em que vôo internacional era feito em DC-8
ou 707. Boeing 747, DC-10 ou Tristar, tudo isso era
novidade. Eu sou do tempo de ter ido ao roll-out
(cerimônia de apresentação na fábrica) do Boeing 767 e
757. Hoje, eles já estão sendo cortados e vendidos como
sucata.
Eu sou do tempo em que a Transbrasil servia feijoada à
bordo às quartas e sábados. Hoje, quem ousar servir
qualquer coisa quente a bordo ganha páginas e mais
páginas na imprensa. Eu sou do tempo em que fax era
novidade. Eu sou do tempo em que as mães que moravam
perto dos aeroportos regulavam a hora da "siesta" dos
filhos de acordo com as decolagens dos Caravelles. Eu
sou do tempo em que se comprava uma linha de telefone e
ela era entregue até três anos depois.
Eu sou do tempo em que o video-cassete era do tamanho do
três-em-um. Eu sou do tempo em que assento só era
reservado no check-in. Eu sou do tempo anterior ao
video-clipe. Eu sou do tempo em que se ia comprar a
"passagem aérea" nas lojas da Avenida São Luis, em São
Paulo. Eu sou do tempo em que revista erótica não
mostrava nem os peitinhos (imagine agora ver três
aeromoças da Varig como vieram ao mundo!) Eu sou do
tempo em que as pessoas, para ficar famosas, tinham que
ter algum dom ou talento.
Eu sou do tempo do Chico Buarque, do Tom Jobim, do Dick
Farney, do Vinícius de Moraes. Eu não sou do tempo da
Sandi & Junior, do Leandro e Leonardo, do KLB e do Bruno
e Marrone. Eu sou do tempo em que a gente se vestia na
estica para andar de avião. Em que a única banca de
revistas que ficava aberta a noite toda era justamente a
do aeroporto de Congonhas. Eu sou do tempo em que os
vôos tinham três dígitos e prefixos no Brasil eram PP ou
PT.
Eu sou de tempos mais elegantes e de pessoas idem. Eu
sou do tempo em que terroristas não eram suicidas. Eu
sou do tempo em que o Brasil era católico. Eu sou de uma
época que passou não faz tanto tempo assim. E, por
incrível que pareça, não sou velho. Tenho 42 anos. É que
eu sou do tempo em que o tempo passava mais devagar. Em
que as mudanças aconteciam num ritmo muito, muito
diferente do que se vê hoje. Só pra você ter uma idéia,
eu sou do tempo em que homens cantavam as mulheres.
Hoje, na época doIpod, pode tudo.
Mas não sinto saudade, não. Sinto apenas alegria e
gratidão por estar vivo. Vejo meus filhos, de três e
cinco anos, falando dos Hornet, Raptor, Airbus e
Embraer. Eu olho para eles e agradeço silenciosamente.
Foi muita sorte ter visto o Viscount da Vasp, o Herald
da Sadia, o YS-11 da Cruzeiro, o Electra da Varig. Foi
maravilhoso ter visto o Concorde da Air France decolar
do Galeão, o Jumbo da Pan Am de Guarulhos, o DC-8 da SAS
partir de Viracopos.
Vem aí o A350, o 787, o A380 e a asa voadora da Boeing
para 1.000 passageiros. Vem aí o jato executivo
supersônico. Vem aí o turismo espacial. Vem muita, muita
coisa pela frente, e espero estar aqui para ver.
Parafraseando meu sábio pai:
"O que vem por aí, pela frente, eu não sei. Só espero
que venha... pela frente."
22/09/2006