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Minha Varig


Meu pai guiava seu fusquinha alemão, ano 61. Estávamos em 1965, passeando pela avenida que pouco depois seria batizada de Ruben Berta. Um Electra passou baixinho, a caminho de Congonhas. Eu, com pouco mais de um ano, gritei ao ver o avião: VARIG, VARIG, VARIG! A cada avião que passava, independentemente da companhia, lá ia eu gritando: VARIG, VARIG, VARIG!

Foram essas as três primeiras palavras ditas na vida: VARIG, VARIG, VARIG! Justamente o slogan da companhia, o prefixo musical que já fazia parte da vida brasileira. De lá para cá, você sabe, minha paixão pela aviação só cresceu. E de tudo isso, muito do que trago foi a Varig quem me deu.

São muitas as imagens da Varig que me vêm à cabeça. Lembro inicialmente do assombro que era o Electra, seus quatro motores gigantes produzindo o maravilhoso e característico silvo de jato-hélice. Os AVRO são outros que me marcaram, e, embora os considerasse simpáticos, não tinham a imponência dos Electra. Lembro das luzes nas pontas das asas, quase sobre as cabeças dos sortudos paulistanos que, nos anos 60, ficavam no pátio a poucos metros delas, a namorar as aeronaves. O cheiro de querosene! O som dos motores! As luzes piscando! As tripulações, a caminho das aeronaves, desfilando confiantes rumo às escadas... Tudo parecia absolutamente fantástico. E era.

Como esquecer a primeira vez que ví, ainda em 1970, a empenagem de um 727-100 da Varig. Visitava minha avó, que morava na Av. Miruna. Era um quente domingo de verão. Lembro como se fosse hoje de ver os três motores junto à cauda em "T". A aviação comercial brasileira dava um salto de qualidade com os primeiros Boeing 727 em uso regular nas rotas domésticas. Nesse ano, meu pai começou a viajar constantemente ao exterior. O ritual de despedida era quase sempre o mesmo: levá-lo à Congonhas, vê-lo desaparecer pelo portão, para minutos depois saudá-lo subindo na escadinha de um Electra ou 727 da Varig, rumo ao Rio. E de lá, num 707 (ou DC-8!), partindo para os Estados Unidos, Europa ou Japão.

Naquela época já obrigava meu pai a anotar os prefixos de todas as aeronaves em que ele voava. Assim, em seus retornos, após abraçá-lo, já ia perguntando os prefixos, e ficava encantado quando ele me dizia ou mostrava os papéis guardados junto ao passaporte, onde anotava com sua letra grande e bem feita. Corria para uma agenda, que guardo até hoje, e me punha a montar o logbook de meu pai: "Ah, PP-VLC até o Rio, PP-VJY até Frankfurt. Na volta, PP-VLO e PP-VJV para São Paulo."

Em meio à tantas lembranças felizes, não dá para esquecer o choque ao ouvir pelo rádio sobre a queda do PP-VJZ em Orly. Naquela noite de segunda-feira, o Jornal Nacional, da Rede Globo, mostrando os restos fumegantes do Boeing, com o prefixo perfeitamente visível, desenhado em tinta negra no nariz do Boeing: "VJZ". Foi a primeira tragédia aérea de que me recordo.

No ano seguinte, 1974, um dia meu pai chegou de Nova York. Acabara de voar pela primeira vez num DC-10 da Varig. A maneira como ele descreveu sua primeira experiência num jato wide-body: "Um ginásio de esportes com asas" Nunca esqueço a metáfora que ele usou para descrever o espaco da classe econômica do PP-VMB. A partir daquele momento, os 707 perderam um pouco do encanto. A sensação mesmo era voar num DC-10. Quando ele voltava com os prefixos anotados, e não constavam da lista o PP-VMA, VMB ou VMQ, confesso que sentia uma certa decepção: "Ah, VJX e VLM. VJX de novo?" Parece que meu pai sempre voava no VJX, ao menos uma vez em cada viagem.

Depois, em 1975, chegaram os 737-200, que a Varig chamava de "Super Advanced". O primeiro que vi foi o PP-VMI, passando rasante sobre a doceira Brunella, que ficava ao lado do Shopping Ibirapuera. Todo paulistano quarentão como eu deve lembrar que, melhor do que o sorvete crocante era a visão, chocante, das aeronaves que passavam baixinho sobre a doceira e sorveteria.

Já com 12 anos, em 1976, confesso que vibrava mais com as coloridas aeronaves da Transbrasil. Mas a Varig, embora não tivesse a riqueza visual das cores da TBA, significava viagem de qualidade. E voar para o exterior, sobretudo. A Varig era sempre algo mais que as outras. A Varig abria as portas do mundo. Meu pai me falava do padrão de serviço a bordo e eu ficava com um frio no estômago, só de imaginar como seria passar a noite, rumo à Europa, sendo tratado como um príncipe. Essa experiência levaria mais aguns anos para se tornar realidade.

Finalmente, em 1981, fiz meu primeiro vôo na Varig. Como não poderia deixar de ser, foi num Electra: Congonhas - Santos Dumont, num dia chuvoso de outubro, nas asas do PP-VLB. Desembarquei encantado.

Foi então que, em janeiro de 1985, os míticos 747, 707 e DC-10-30 da Varig começaram a ser admirados com freqüência: a inauguração do Aeroporto Internacional de Guarulhos trouxe os grandes jatos intercontinentais da Pioneira, finalmente, para São Paulo. Naqueles tempos, era comum passar por GRU pelo menos uma ou duas vezes por semana. Depois do jantar, ficava sozinho, debruçado sobre o terraço (aberto, para quem não se lembra, onde hoje são as salas VIP), observando a partida noturna dos jatos da Varig rumo ao exterior. FIcava-se tão perto que era possível acompanhar a tripulação fazer o check-list na cabine de comando, através das enormes janelas frontais dos DC-10.

Naquela época, meados dos anos 80, um grande programa era ir para o Galeão à noite. Que poderio mostrava a Varig: seis, sete 707, outros tantos DC-10-30, mais os imponentes 747-200 e 747-300 partindo, um atrás do outro, para o estrangeiro. Los Angeles, Tóquio, New York, Lagos, Abidjan, Ilha do Sal, Miami, Madrid, Lisboa, Paris, Londres, Milão, Roma, Amsterdam, Copenhagen, Zurique, Caracas, Bogotá, Santiago, Buenos Aires, Cidade do México. Um congestionamento de Ícaros.

Nos anos 80, comecei mesmo a voar seguidamente pela empresa. na Ponte Aérea, nos Electra; nos vôos domésticos, nos 727 e 737-200. Em janeiro de 1986, fiz meu primeiro e único vôo num 707 da Varig: PP-VLN, Galeão-Guarulhos. Em 12 de fevereiro de 1987, a primeira viagem na primeira classe da Pioneira: RG 766, Guarulhos-Galeão (PP-VMQ) e Galeão-Charles de Gaulle (PP-VMW). Definir o serviço como esplendoroso é pouco: latas de caviar de meio quilo, contei três; depois, adentrou a cabine um comissário, trazendo num carrinho, uma peça de churrasco gaúcho no espeto. Arrancou gritos entusiasmados do francês sentado na 3A, bem atrás de mim, que ocupava a 2A. Omar Fontana estava na 2B. O presidente da Varig, Hélio Smidt, viajava na 1A, seu vice Rubel Thomas estava na 1B. Outros diretores da Varig, entre eles o Cmte. Schittini, completavam a lotação da primeira classe, todos a caminho da cerimônia de roll-out do Airbus A320 em Toulouse, França.

Em 1989, meu primeiro vôo num 747-300 da companhia: PP-VOA, RG 744 entre Galeão e Frankfurt. Em 1991, primeira classe do 747-200: na corcova do PP-VNA, RG 810 entre Guarulhos, Galeão e Miami: outro espetáculo. Entrei na era MD-11 em 14/6/93, voando o PP-VPK no RG722, GRU-GIG-CDG. Em 31/3/94, primeiro vôo num 767: PP-VNR, entre GRU e Buenos Aires. Classe executiva, um jantar excepcional, o executivo argentino sentado ao meu lado rasgando elogios à Varig: "Mudo tudo nas minhas viagens só para poder voar sempre de Varig."

O coração de passageiro nunca se enganou: voar Varig era muito, muito bom. Mas, em meados dos anos 90, a qualidade começou a cair. A princípio, sutilmente: tiraram as sopas das refeições na Classe Executiva, diminuiram o tamanho e depois a qualidade das latas de caviar... As necessaires, antes maravilhosas, recheadas com produtos Hermés, começaram a ficar menores, mais simplificadas. Pequenos sinais de um grande problema: a Varig começava a definhar.

As empresas internacionais concorrentes começaram a colocar em operação aeronaves maiores, mais modernas. A Varig começou a ficar para trás. Quem como eu, estudava a indústria, sabia que se os sinais externos eram sutis, mas os problemas da Varig já eram sérios. A empresa era administrada olhando apenas para o próprio umbigo. Seus diretores mostravam despeito com as congêneres nacionais. E faziam pouco caso das estrangeiras de grande porte, com quem começavam a perder na competição direta. Essa atitude arrogante era mesmo o começo do fim. Ouvi um diretor da Varig, em princípios dos anos 90, comentar sobre a introdução de novos modelos pelas concorrentes: "Pode trazer o A340, o 747-400, o que for. Nenhum deles terá nunca a qualidade de nossos tripulantes, o carinho e a atenção que só eles sabem dar. Isso não nos preocupa. Brasileiro voa Varig."

Hoje, vejo meus filhos crescendo e sei que eles dificilmente vão voar na Varig. Como jamais voarão Vasp ou Transbrasil. Nunca saberão o que era voar num Samurai, num AVRO, num 737-200. Eles sabem o que são os Boeings da Gol, os Fokker e Airbus da TAM. Mas reconhecem no ato, quando enxergam, mesmo de longe, a rosa dos ventos nas caudas azuis: "Olha pai, o MD-11 da Varig!" Os moleques têm 5 e 3 anos. Ainda não compreendem como restaram poucas caudas azuis nos aeroportos brasileiros.

"Time is wind, old folks say, getting stronger - everyday." O tempo passa, cada vez mais rápido. Tudo nasce, cresce, brilha e desaparece. Empresas e pessoas vêm e vão. Algumas poucas deixam marcas, rastros, saudades. Com tudo que se vê ultimamente, só espero que meus filhos possam ter, um dia, prefixos começando pela letra"V" para anotar em seus logbooks.

12/08/2006

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