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Memórias supersônicas
Há pouco mais de um mês, estive em Paris, onde fui fazer
a cobertura da feira aérea de Le Bourget. Minha viagem
me fez passar por Londres. Em ambas as cidades, nos seus
aeroportos principais, estão expostos dois exemplares da
mais bela máquina já construída pelo homem: o Concorde.
A visão dessas máquinas traz sentimentos ambivalentes.
Suas linhas enchem os olhos, provocando absoluta
admiração. Mesmo passados mais de 40 anos desde que
foram concebidas, é fácil notar que ainda não se fez
nada mais belo e arrebatador na indústria do transporte.
Mas, se a ave branca enche os olhos, a seguir pode
deixá-los mesmo mareados. Olhar para essas máquinas
portentosas e vê-las paradas, condenadas à eterna
existência terrena, presas ao solo, é como admirar
pássaros empalhados. As linhas estão lá. Mas sem vida,
sem carisma, sem energia. Longe do céu, seu meio
natural, os Concordes são como grandes carcassas.
Ou, se preferir, são tributos à mesquinhez humana,
testemunhas de uma época em que o futuro era um lugar
melhor que o presente. Tempos em que sonhar não só era
possível, como obrigatório. Tempos em que o curso
natural da vida parecia apontar sempre para adiante,
para acima, para além. O Concorde talvez seja o ícone
supremo de um momento único ao gênio humano. Um tributo
alado à sua capacidade realizadora. Quando foi
concebido, nem mesmo o céu era o limite: fez seu
primeiro vôo em 1969, meses antes do homem colocar o pé
na lua.
O Concorde é a testemunha do poder realizador do homem,
e paralelamente, sua história demonstra o que o homem
pode ter de pior. Triunfo tecnológico, o Concorde teve
sua utilização prática - e sucesso comercial -
devastados pela crise energética de 1973, o famoso "Oil
Shock". Não menos, foi abatido pelo protecionismo do
congresso norte-americano, que retardou o início das
operações regulares do supersônico o quanto pôde, na vã
tentativa de proteger a indústria aeroespacial
norte-americana, que andava bem atrás do consórcio
franco-britânico que desenvolvia o Concorde.
No final das contas, o mesmo congresso que baniu o
Concorde, ao perceber que o Boeing 2707 - criado para
superar o SST europeu - não sairia das pranchetas,
acabou permitindo as operações comerciais do tipo em
céusyankees, a partir de 1977. Da concórdia que visava
estabelecer, o SST ficou mesmo no nome, não apenas no
campo político como, quem diria, no social. Os usuários
do Concorde se consideravam pertencentes à uma casta
superior, a um clube fechadíssimo. Se você viajava no
Concorde, era sinal de que o distinto já havia "chegado
lá". O que não deixa de ser um triste paradoxo: a
máquina, concebida para aproximar as pessoas em
velocidades recordes, acabaria sendo veículo de
discórdia, inveja, soberba.
Mas há também um enorme saldo positivo deixado pela
máquina. O seu desenvolvimento ensejou estudos de novos
materiais, tecnologias, métodos construtivos, novas
idéias que sobrevivem até hoje em aeronaves que se valem
dos avanços desbravados pelo Concorde.
Mas esta não será a razão pela qual ele será sempre
lembrado. O elegante SST, ao menos para o seleto grupo
de terráqueos capaz de pagar pelas passagens caríssimas
(duas vezes o preço de uma primeira classe), era mais do
que um meio de transporte: foi uma ferramenta
preciosíssima para executivos, herdeiros, milionários e
estrelas obterem justamente o que mais conta para este
grupo: tempo. O Concorde foi a única máquina em
transporte regular que permitia aos seus usuários uma
façanha que acabaria por se transformar em seu próprio
slogan: "Chegue antes de sair." Voando mais rápido que
uma bala de fuzil, o Concorde era também mais veloz que
a rotação da Terra. A aeronave decolava de Londres e
Paris, pela manhã, e chegava a Nova York antes do
horário de saída da Europa.
Na prática, isso permitiu que mega-empresários, artistas
e barões dos sistema financeiro saíssem da Europa pela
manhã, cumprissem agenda de trabalho em Nova York e
retornassem, no mesmo dia, aos seus lares. O vôo durava
em torno de 3 horas, apenas. Ou menos: travessias de
02h50, com ventos favoráveis, não eram assim tão raras.
Tanto é assim que no "reveillón do milênio" (de 1999
para 2000), um grupo de 100 pessoas comemorou a passagem
do ano duas vezes: à meia noite, em Paris; algumas horas
e várias taças de champagne depois, tin-tin ao ano novo,
desta vez em Nova York.
Você deve estar se perguntando: como seria a sensação de
voar no Concorde? Absolutamente inesquecível. Voei uma
única vez. Estava na hora certa no lugar certo. Sobrei,
em setembro de 1996, um fim de semana na Europa, a
trabalho. Ao abrir o jornal, deparei-me com um anúncio
oferecendo"Supersonic Lunches" por 500 libras, ou quase
800 dólares. A British Airways encontrou uma maneira
inteligente de diminuir os custos de seus vôos de
treino: vendia lugares no Concorde a preços bem menores
(o equivalente a apenas 15% do valor de uma passagem
regular) para passageiros interessados, como eu,
simplesmente experimentar a sensação de fazer cócegas na
troposfera.
Lá fui eu no domingo 8 de setembro de 1996. A aeronave (G-BOAA)
era bastante limitada em termos de espaço. Lembrava um
Fokker F-27, talvez menor. Os bancos eram confortáveis,
mas longe de parecer Primeira Classe - o Concorde tinha
apenas 100 assentos de classe única, com 4 poltronas por
fileira. Quando os motores Olympus ganharam vida, ficou
evidente que aquela era uma máquina única. Iniciamos o
taxi e pela janelinha, notei que todos no aeroporto
paravam de trabalhar para ver o Concorde passar.
Alinhamos na pista: o comandante do vôo, David Rowland,
explicou que nossa decolagem seria mais breve e a
aceleração mais pronunciada do que de costume, em razão
de nosso peso de decolagem estar abaixo do normal: não
levávamos muito combustível e nenhuma bagagem, pois
iríamos voar "apenas" até a vertical da Islândia, num
trajeto estimado em aproximadamente 01h30.
Dito e feito: o ruído ensurdecedor dos 4 motores fez o
coração bater mais forte. A aceleração me prendeu contra
o encostou do assento. A puxada magnífica, o ruído e a
velocidade crescendo a cada segundo voado (ao menos logo
após da decolagem) me fez perceber que aquele não seria
um vôo qualquer. Após ultrapassarmos o litoral, o
Concorde foi autorizado a subir e a acelerar: o marcador
de velocidade na cabine foi rapidamente subindo, mas a
passagem pela barreira do som foi anti-climática: nenhum
ruído ou vibração. Apenas a indicação no Machmetro
(velocímetro da escala Mach) mostrou: Mach 0.97, 0.98,
0.99... Mach 1.00, 1,01... Simples assim.
Voávamos a 56.000 pés e a temperatura externa marcava
58ºC negativos. Dentro da cabine, o ruído era intenso:
sobretudo por seu componente aerodinâmico: o barulho é
muito mais provocado pelo ar passando pela fuselagem da
aeronave do que pelos motores. Serviram o tal do almoço
supersônico. Muita champagne, salmão, frutas, doces,
belos vinhos. Muito bom, mas ninguém de fato estava lá
pela comida. Assim mesmo, o serviço foi feito de forma
graciosa e leve, bem-humorada, como a ocasião ensejava.
Quando o vôo foi se aproximando do final, resolvi que
não poderia sair do mesmo sem levar comigo os "Souvenirs"
da viagem: cardápio, instruções de segurança, papelaria,
folhetos impressos e, claro, o diploma que cada
passageiro do supersônico recebia ao final de cada vôo
(assinado pelo comandante) atestando que o distinto
havia voado além de Mach 2, ou mais de duas vezes a
velocidade do som; recolhi tudo e mais um pouco (uma
colher de chá fazia parte do butim) e já me preparava
para enfiar tudo na mala de mão quendo a comissária
chefe explicou aos passageiros que todos esses ítems (à
exceção da colher e das instruções de segurança) eram
mesmo para ser levados para casa.
Sorri satisfeito um sorriso amarelo. Olhando para os
lados, vi que muitos dos passageiros tinham a mesma
intenção: levar para casa os "recuerdos" da memorável
jornada. A bordo, ao invés dos ricos e poderosos de
costume, éramos um grupo heterogêneo, quase todos
admiradores do Concorde: havia casais de meia idade;
entusiastas de aviação; uma octagenária que nunca havia
voado; um passageiro, doente terminal, que queria saber
como seria voar no Concorde antes de alçar o mais alto
dos vôos; um casal havia ganho a viagem numa rifa; outro
viajava para comemorar 25 anos de união. Pessoas de
várias nacionalidades, credos, cores, idades, condições.
Criado para unir, não para separar as pessoas, um
perfeito exemplo da missão que o Concorde deveria
cumprir.
O G-BOAA desacelerou e entrou no tráfego subsônico,
executando curvas e seguindo a fila como qualquer
aeronave convencional até pousar, depois das 14h00, de
volta ao aeroporto de Heathrow. Motores cortados, palmas
encheram a cabine. Alguns até deitaram lágrimas.
Logo descemos ao pátio e embarcamos no ônibus que
lentamente nos levaria de volta ao terminal. Havíamos
tido a sorte grande de experimentar uma das mais
sensacionais criações da raça humana. Todos, em perfeita
concórdia, haviam dividido, por pouco mais de duas
horas, a sensação indescritível de voar naquela máquina
barulhenta, apertada, carismática, insubstituível: o
eterno Concorde.
Gianfranco Beting
13/08/2007