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Vasp 168 Um triste recorde

Nosso Blackbox vai abordar o segundo maior desastre aéreo da história da aviação brasileira. Na madrugada de oito de junho de 1982, um Boeing 727-200 da Vasp colidiu com a Serra de Aratanha, perto de Pacatuba, Ceará, matando instantaneamente todos os 137 ocupantes. A causa do acidente foi uma das mais mortíferas na aviação: o famoso CFIT, Controlled Flight Into Terrain, ou Vôo Controlado Contra o Terreno (VCCT). Acidentes são assim chamados tecnicamente quando uma aeronave em perfeitas condições mecânicas colide inadvertidamente contra o solo, por imperícia ou negligência de seus tripulantes ou por falha dos controladores de terra, que literalmente "jogam" uma aeronave contra o terreno. A aviação brasileira é pródiga em acidentes causados por CFIT. A própria Vasp é uma das empresas que mais aeronaves perdeu em acidentes assim. Apenas para citar dois dos mais mortíferos: com 39 ocupantes, o Viscount V701 PP-SRR, que colidiu com a Serra da Caledônia, Nova Friburgo, RJ, em 1964; o YS-11 de prefixo PP-SMI, outra colisão, desta vez contra uma montanha em Petrópolis, também no estado do Rio de Janeiro, num vôo da Ponte Aérea em abril de 1972. Outro famoso CFIT de nossa aviação é o acidente que vitimou o Boeing 727-100 da Transbrasil, PT-TYS, em 12 de abril de 1980. Vamos agora relatar os acontecimentos que levaram à perda do Boeing 727-200 da Vasp. A noite de terça-feira, 7 de junho de 1982, era uma típica noite de outono paulistano, fria e garoenta. No aeroporto de Congonhas, embarcaram a maioria dos passageiros no 727-200 PP-SRK, o Boeing mais novo a integrar a frota da Vasp. Arrendado da Singapore Airlines há pouco mais de um ano, o Boeing 727 (fabricado em 1977) seria tripulado por três profissionais de comando: o comandante Fernando Paiva, 43 anos, que tinha quase 17.000 horas de vôo; o primeiro oficial (F/O) era Carlos Roberto Barbosa, 28, há dois anos e meio na função; e o engenheiro de vôo José Erimar de Freitas, 31 anos. A partida de São Paulo deu-se às 21h53. A primeira etapa foi cumprida em pouco mais de 30 minutos, tempo de vôo normal até o aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro. Na escala na capital carioca, desceram alguns poucos passageiros vindos da capital paulista e embarcaram outros 67 passageiros, totalizando nove tripulantes e 128 passageiros a bordo. Dentre os passageiros, crianças, estudantes, aposentados e até mesmo famílias inteiras fugiam do frio do sul do Brasil e rumavam para o sol e para as belas praias cearenses. Também estavam no vôo 168 um grupo de empresários cearenses, que nos dias anteriores, haviam participado de uma feira do setor têxtil realizada em São Paulo. O tempo de solo na escala no Galeão foi curto: passava pouco da meia noite, quando o elegante trijato recebeu autorização do controle de solo para acionamento e push-back. Já era madrugada do dia 8 de junho quando o Boeing 727-200 iniciou o taxi e depois de sete minutos, alinhou na pista 09 do Galeão. Potência aplicada aos motores Pratt & Whitney JT8D-17, o trijato rugiu e iniciou a corrida pelos 4 km da pista, partindo para seu último vôo precisamente às 00h12. Reabastecido com 22.000 litros de combustível, o Boeing partiu pesado para a etapa até Fortaleza. Seu plano de vôo por instrumentos indicava a navegação pela aerovia UR-1 no nível 330, ou seja, 33.000 pés. Após a decolagem, a tripulação na cabine de comando relaxou para a etapa final até a capital cearense, monitorando apenas o pouco tráfego pela proa, os waypoints (pontos de checagem de rota) e administrando o consumo dos motores do Boeing. Logo depois de estabilizados, os três profissionais receberam dos comissários do vôo, liderados pelo chefe de cabine Humberto Pestana, um jantar completo, degustado sem pressa na penumbra da cabine de comando. Mas aqueles não estavam sendo dias fáceis nem para a Vasp nem para o comandante Paiva. A empresa havia perdido dias antes um Boeing 737-200, PP-SMY, acidentado em Brasília durante o pouso, matando um passageiro. O clima na companhia não poderia ser dos melhores e com o Cmte. Paiva isso também ocorria, por razões pessoais. Colegas de companhia afirmam que o comandante da Vasp vinha enfrentando dificuldades pessoais, que o deixavam bastante instável emocionalmente. Tanto é assim que o comandante havia sido afastado por algumas semanas do vôo por razões médicas - stress. Pessoas próximas ao Cmte. Paiva afirmam que ele passava por maus momentos sobretudo por questões financeiras: separado, vivendo com outra mulher, ele tinha de arcar com custos crescentes para manter duas casas separadas. É sabido que ele tinha uma enorme dívida que venceria em questão de dias. Se na cabeça do comandante Paiva havia muitas nuvens, o mesmo não pode ser dito do tempo em rota, que era muito bom por quase a totalidade do percurso. Na madrugada de Fortaleza o mesmo acontecia: havia nuvens esparsas a 600 metros de altura, mas nada que impedisse a visualização das luzes da cidade e mesmo da pista 13 do aeroporto Pinto Martins, que seria usada para o pouso do vôo 168. Nunca saberemos precisamente o que se passava na cabeça de Paiva quando, as 02h25 da manhã, e ainda bastante muito distante (140 nm - 259 km) do aeroporto, ele solicitou ao controle de aproximação de Fortaleza o cancelamento do procedimento por instrumentos e início da descida sob regras visuais (VFR - Visual Flight Rules). Mas o leitor do Blackbox do Jetsite já sabe que raros são os acidentes ocorridos por uma só causa. A bruxa só aparece quando uma cadeia de fatores são jogados no seu caldeirão. Nessa noite, a desatenção do controlador mostrou-se como mais um fator, mas preponderante, na cadeia de eventos que levaria à tragédia. O controle de solo instruiu o Vasp 168 a iniciar a descida para o FL 050 (5.000 pés) devendo reportar quando cruzasse o FL100 (10.000 pés) e quando nivelasse a 5.000 pés. O controlador confiou nos tripulantes da Vasp, mas não foi enfático na necessidade do início de descida a 90 milhas do aeródromo. A troca de informações não deixa margem a dúvidas. As horas indicadas são locais. 02h25:05 - F/O Barbosa: É o Vasp 168 para a descida, nível 330. Controle Fortaleza: Ok, ciente... Está a aproximadamente 90 milhas? 02h25:17- F/O Barbosa: A 140 milhas. Controle Fortaleza: Ok, mantenha escuta. Neste momento, o controle obrigatoriamente deveria ter alertado a tripulação ou simplesmente proibido a descida antes do ponto previsto na STAR (Standard Terminal Arrival Route) que governava o plano de vôo do Vasp 168. Ao invés disso, o controlador simplesmente respondeu: 02h25:56 Controle Fortaleza: Ok 168, está autorizado para o nível 050, chamar cruzando o nível uno zero zero. Operamos visual, pista uno-três, ajuste (altímetro) 1013, temperatura 26°. 02h26:12 - F/O Barbosa: Positivo para o 50, reportarei o 100. A caixa-preta do Boeing mostra que o clima na cabine é descontraído. Talvez descontraído até demais. Conversas espúrias à operação dominam os diálogos entre os tripulantes que comentam, por exemplo, sobre os programas que pretendem fazer após a chegada, durante o período de descanso na capital cearense. 02h37:25 - F/O Barbosa: Vasp 168 cruzando noventa, cinquenta e cinco milhas (NE: distância do aeroporto). 02h37:33 Controle Fortaleza: Ciente até zero cinco zero, ao atingir mantenha e chame mais próximo, uno meia oito. 02h37:37 - F/O Barbosa: Ciente. 02h37:48 - Cmte. Paiva: (ao eng. Freitas): Pode fazer o cheque (check-list de aproximação). 02h37:52 A bordo do 727, o engenheiro inicia o check-list de aproximação. Entre outros ítens, Paiva e Barbosa confirmam as velocidades para cruzamento de cabeceira (V-Ref) de 132 nós e a configuração para pouso com flaps 40. 02h39:15 - Eng. Freitas: Descent and approach check-list is complete. 02h39:45 - Soa nesse momento o primeiro alarme dentro da cabine do VP168: o alerta de altitude, quando o Boeing cruza os cinco mil pés, limite de altura fixado pelo controle. O 727 continuaria a descer e logo começaria a voar muito rente ao terreno, que começava naquele ponto a se elevar, formando a serra da Aratanha. Mais um ingrediente é colocado no caldeirão da bruxa: o primeiro oficial Barbosa não reporta ao controle de solo o cruzamento da altitude, conforme havia sido instruído a fazer. E tampouco faz qualquer menção ao Cmte. Paiva, como seria sua obrigação, sobre o fato da aeronave continuar sua descida abaixo do mínimo estipulado, 5.000 pés. Tivesse Barbosa cumprido essas duas chamadas e talvez a história fosse outra. Sua omissão custaria muito caro a todos os ocupantes do PP-SRK. Um pouco à direita da proa da aeronave, as luzes de Fortaleza já eram claramente visíveis, o que incutia no comandante uma falsa sensação de segurança. Se ele avistava a cidade, é natural que raciocinasse que era seguro prosseguir a aproximação visual. Mas na praticamente deserta região que o PP-SRK sobrevoava, não haviam luzes que indicassem a rápida aproximação do terreno bem à sua frente. Além disso, uma leve camada de nuvens a 600m de altura, justamente a altitude que cruzava o Boeing, dificultaria ainda mais a percepção do terreno aproximando-se rapidamente. Minutos depois, as luzes do 727 começaram a iluminar a formação de terreno, que estava à esquerda da aeronave, aproximando-se num ângulo raso. A perturbadora visão incomodou o primeiro oficial, que comentou: 02h44:40-VP168 - F/O Barbosa: Dá pra ver que tem uns morrotes aí na frente? 02h44:44 - Cmte. Paiva: Hã? Tem o quê? 02h44:50 - F/O Barbosa: Uns morrotes aí. Apenas um segundo depois, soa na cabine do Boeing o alerta de altitude: o vôo Vasp 168 está chegando ao seu trágico final. O comentário do primeiro oficial Barbosa deve ter finalmente chamado a atenção do comandante Paiva, naquele momento concentrado em pilotar o jato, olhos fixos nos instrumentos. O silêncio na cabine é cortado segundos depois pelo som do primeiro impacto da asa esquerda e da parte inferior da fuselagem com o terreno. Por uma fração de pouco menos de um segundo, fica gravado na caixa-preta do Vasp 168 um aterrador grito de pânico, atribuído por colegas e profissionais que conheciam o comandante como tendo sido emitido pelo próprio Paiva. Palavras não são capazes de traduzir o horror contido no curto grito, que fica como epitáfio para o vôo 168. 02h44:59 - Cmte. Paiva: Aaaaah! Eram exatamente 02h45:00 quando terminou a gravação da caixa-preta do PP-SRK. Voando a 590 metros de altura e a 550 km/h, o Boeing 727-200 colidiu e explodiu violentamente contra a Serra da Aratanha, matando numa fração de segundo todos os seus 137 ocupantes. A explosão foi tão violenta que não houve tempo para a ignição do combustível. A destruição foi total: as maiores partes reconhecíveis do 727 eram um painel lateral da fuselagem de poucos metros de comprimento e um dos motores, partido ao meio. Membros dilacerados, partes irreconhecíveis dominavam as centenas de metros por onde os destroços se espalharam. Poucas vezes na história da aviação uma colisão foi tão devastadora. Alheios a tanta violência, no aeroporto Pinto Martins familiares e amigos dos ocupantes do Vasp 168 aguardavam ansiosos a chegada do vôo. Por volta das três horas e trinta da manhã, depois do horário previsto da chegada, o controle avisa aos funcionários de terra da Vasp que o contato com o vôo 168 foi perdido. Minutos depois, esses funcionários da empresa comunicam aos familares que aguardavam a chegada do vôo que o Boeing estava "desaparecido," sem contudo serem capazes de fornecer maiores explicações. Uma longa e angustiante madrugada de espera e sofrimento seguiu-se até as as primeiras horas da manhã quando, para desespero de parentes, amigos e funcionários da empresa, foi confirmado o pior desastre da história da aviação comercial brasileira até então. Essa tragédia só seria superada em 2006, na colisão do 737 da Gol com um jato Legacy, que deixoaria um total de 154 vítimas.

Gianfranco Beting N.E.

O autor agradece imensamente a colaboração de nosso leitor Alex Sandro Guedes Silva, que colaborou com dados e fatos preciosos para a elaboração deste Blackbox.  

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