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SR111 Céus escuros (Swissair MD-11)

Há poucos dias, ainda no mês de setembro de 2005, no casamento de um amigo em comum, encontrei-me em São Paulo com Linda, querida amiga suíça e comissária da Swiss. Linda é uma pessoa especial: em primeiro lugar, porque ama o que faz. Além de fazer justiça ao seu nome, ela é casada com um grande amigo e fotógrafo de aviação, Pierre Rohr, que até bem pouco tempo era co-piloto de MD-11 na Swissair e hoje pilota os 747-400F da Cargolux.

Nossa conversa não poderia ser outra: aviões, aviões e aviões. O assunto acabou evoluindo até que entramos num tópico delicado: o acidente que ralataremos neste Blackbox, que vitimou um MD-11 da Swissair em 2 de setembro de 1998. Linda acabou falando do assunto naturalmente, com uma calma espantosa, em face do que ela acabara de me revelar: ela não apenas tinha muitos conhecidos no trágico vôo, como na verdade, estava mesmo escalada para trabalhar no SR111 entre New York JFK e Genebra, sua cidade natal, naquela fatídica noite. Quiz o destino que ela trocasse sua escala: naquele fim de tarde, Linda encontrou no lobby do hotel em New York com os tripulantes que embarcariam horas depois no vôo 111. Ela deu adeus aos colegas sem saber que a despedida seria para sempre: nenhum dos 229 ocupantes do MD-11, matrícula HB-IWF, sobreviveu ao desastre, o mais grave da história da Swissair.

Tudo parecia absolutamente corriqueiro: o jato decolou no horário de New York - JFK com destino a Genebra, um vôo de pouco mais de 9 horas de duração; a Swissair era indiscutivelmente era uma das melhores, mais sérias empresas aéreas do mundo, de reputação incontestável, sobretudo no tocante à manutenção; os jatos MD-11, então os mais modernos da frota, eram imaculadamente mantidos pelos laboriosos mecânicos suíços. Em pouco mais de 9 horas, o Atlântico Norte seria vencido e os Alpes suíços receberiam o majestoso trijato como milhares de outras vezes.

Dentro da cabine, os 15 profissionais que cuidavam dos 214 passageiros não podiam ser mais qualificados. A começar pelo comandante Urs Zimmermann, 49 anos, 9.300 horas de vôo, comandante na Swissair desde abril de 1983 e com 900 no comando do MD-11. Seu co-piloto, Stefan Loew, 36 anos, timha 2.800 horas de vôo sendo 220 no MD-11. Ambos eram profissionais reconhecidamente exemplares, tanto que acumulavam funções de instrutores na própria Swissair.

Tanto o aeroporto de partida como de chegada eram terreno conhecido dos dois profissionais. O HB-IWF, batizado "Vaud" em homenagem a um cantão suíço, era uma aeronave relativamente nova, com apenas 7 anos desde a entrega na fábrica. No momento do acidente, tinha 35.000 horas de vôo e 6.400 ciclos. Seu último check mais minucioso (D) foi em agosto de 1997. O último check B foi realizado em agosto de 1998.

As 21h18, aproximadamente 53 minutos depois da decolagem, enquanto o trijato cruzava a 33.000 pés, a tripulação notou um odor incomum na cabine de comando. Três minutos e meio depois, os primeiros sinais de fumaça foram percebidos dentro do cockpit. Começava aí o drama do SR111.

A transcrição a seguir mostra todo o conteúdo dos gravadores de cabine do HB-IWF. Equipado com um modelo do tipo mais antigo, que registrava apenas os 30 minutos finais de gravação, a transcrição começa pouco antes dos primeiros sinais de problemas. Os horários são locais e, apenas para referência, são GMT-3.

SR111 - 21h58:15 - Centro Moncton, Swissair 111 heavy, (denotando aeronave wide-body) boa noite, nível três três zero.

Centro Moncton 21h58:20 - Swissair 111 heavy, centro Moncton. Boa noite, reportes de turbulência leve em todos os níveis.

Uma grande quantidade de aeronaves tenta utilizar a freqüência, neste que é o grande horário de pico nas travessias transoceânicas no rumo leste. Uma das mensagens do SR111 é embaralhada pela fonia do vôo United 920.

Centro Moncton - 22h14:12 - United nove dois zero heavy, centro Moncton. Boa noite, temos reportes de turbulência leve em todos os níveis.

SR111 22h14:18 - Swissair 111 heavy está declarando Pan Pan Pan. Temos fumaça na cabine de comando. Solicitamos retorno imediato para alguma alternativa conveniente... acho que... Boston?

Centro Moncton - 22h14:33 - Swissair 111 roger ... curva à direita ...uh ... confirme que deseja ir para Boston?

SR111 22h14:35 - Talvez Boston ... precisamos primeiro das condições de tempo para saber se iniciamos uma curva à direita aqui, Swissair 111 heavy.

Centro Moncton - 22h14:45 - Swissair 111, roger, desça para nível três uno zero. Ok para você?

SR111 22h 14:50 - Três uno zero, Swissair 111 heavy.

Centro Moncton - 22h15:03 - Swissair 111, centro Moncton.

SR111 22h15:06 - Swissair 111 heavy, prossiga.

Centro Moncton - 22h15:08 - Você prefere ir para Halifax?

SR111 22h15:11 - Standby!

SR111 22h15:38 - Afirmativo para o Swissair 111 heavy. Nós preferimos Halifax desde nossa posição atual.

Centro Moncton - 22h15:43 - Swissair 111 roger, proceda direto para Halifax, desça para nível dois nove zero.

SR111 22h15:48 - Nível dois nove zero para Halifax, Swissair 111 heavy.

Nesse momento, um 747 da British Airways, voando nas proximidades e na escuta da mesma freqüência, oferece ajuda ao Swissair 111:

BAW214 22h15:58 - E. ah. Swissair 111 heavy do Speedbird dois uno quatro, eu posso fornecer as condições de tempo em Halifax se você quiser.

SR111 22h16:04 - Swissair 111 heavy. Estamos colocando máscaras de oxigênio. prossiga com as condições em Halifax.

BAW214 - 22h:16:10 - Okay, informação três zero zero zulu: vento uno uno zero com nove nós (direção e intensidade do vento), uno cinco milhas (visibilidade horizontal), scattered (nuvens esparsas) no nível uno dois zero, broken no nível dois cinco zero, temperatura mais dezessete, mais doze, dois nove oito zero (pressão), câmbio.

SR111 22h16:29 - Roger Swissair 111 heavy , recebido, altímetro dois nove oito zero.

Centro Moncton - 22h16:36 - Swissair 111, autorizado para 10.000 pés e haaa. altímetro dois nove oito zero.

SR111 22h16:41 - Para 10.000 pés, altímetro dois nove oito zero, Swissair 111 heavy.

Centro Moncton - 22h16:52 - Swissair 111, pode fornecer a quantidade de combustível e o número de passageiros a bordo?
SR111 22h16:53 - Uh. aguarde para a informação.

Centro Moncton - 22h18:19 - Swissair 111 pode contatar o controle Halifax em uno uno nove decimal dois?

SR111 22h18:24 - Uno uno nove decimal dois para o Swissair 111 heavy.

Centro Moncton - 22h18:31 - Roger.

SR111 22h18:34 - Controle Halifax boa noite. Swissair 111 heavy livrando dois cinco cinco descendo para nível de vôo dois cinco zero no rumo de Halifax. Voando na radial zero cinco zero.

Controle Halifax 22h18:46 - Swissair 111, boa noite, desça para três mil pés, ajuste altímetro dois nove sete nove.

SR111 22h18:51 - Ah, nós preferimos manter oito mil pés, dois nove sete nove, até estarmos prontos para o pouso.

Controle Halifax 22h19:00 - Swissair 111. autorizado descer até 3.000 pés e permancer em altitude de transição de sua escolha. Apenas informe sua altitude.

SR111 22h19:07 - Roger. Vamos para oito mil pés, entendido liberado a qualquer momento até três mil, manterei avisado.

Controle Halifax 22h19:14 - Okay. Posso vetorá-lo para a pista 06 em Halifax?

SR111 22h19:19 - Repita o vento, por favor?

Controle Halifax 22h19:22 - Okay, pista em uso em Halifax zero seis. Quer vetoração para a pista zero seis?

SR111 22h19:26 - Sim, vetoração para a pista seis seria bom, Swissair 111 heavy.

Controle Halifax 22h19:30 - Swissair 111, curva à esquerda, proa zero três zero.

SR111 22h19:35 - Curva à esquerda, ah, proa zero três zero para o Swissair 111.

Controle Halifax 22h19:39 - Okay, é o rumo contrário da aproximação para a zero-seis. Freqüência do localizador uno zero nove decimal nove. Você tem trinta milhas até a cabeceira.

SR111 22h19:53 - Uhhh... Nós precisamos de mais de trinta milhas. Por favor, informe novamente a freqüência do localizador oposto.

Controle Halifax 22h19:59 - Swissair 111 roger, curva a esquerda, proa três seis zero para perder alguma altitude, freqüência é uno zero nove decimal nove do localizador oposto, aproximação é do tipo back course.

SR111 22h20:09 - Uno zero nove decimal nove, curvando a esquerda para a proa norte, Swissair 111 heavy.

Controle Halifax 22h21:23 - Swissair 111, quando possível, informe o número de pessoas a bordo e quantidade de combustível, para informar as equipes de emergência.

SR111 22h21:30 - Roger, no momento combustível é dois três zero toneladas. Nós precisamos alijar algum combustível. Podemos fazer isso nesta área enquanto descemos?

Essa informação foi passada erroneamente pelo co-piloto. Na verdade, 230 toneladas era o peso total da aeronave naquele momento.

Controle Halifax 22h21:40 - Uh okay, eu vou autorizar. Vocês podem fazer uma curva para a proa sul ou preferem ficar mais próximos do aeroporto?

SR111 22h21:47 - Uh, aguarde, aguarde.

SR111 22h21:59 - Okay podemos voar na proa sul, para alijar combustível.

Controle Halifax 22h22:04 - Swissair 111 uh, roger, curva à esquerda proa dois zero zero graus. Informe quando pronto para alijar. Você estará a aproximadamente 10 milhas da costa, e aproximadamente 25 milhas do aeroporto.

SR111 22h22:20 - Roger, curvando a esquerda e descendo para 10.000 pés para alijar combustível.

Controle Halifax 22h22:29 - Okay, mantenha dez mil pés. Avisarei quando vocês estiverem sobre a água. Não falta muito.

SR111 22h22:34 - Roger.

SR111 22h22:36 - Você está no checklist de emergência. fumaça no ar condicionado?

Controle Halifax 22h22:42 - Uh Swissair 111, repita por favor?

SR111 22h22:45 - Ah, desculpe, o Swissair 111 estava falando aqui internamente. Desculpe a minha falha.

Controle Halifax 22h22:50 - Okay.

Controle Halifax 22h23:33 - Swissair 111 continue curva à esquerda proa uno-oito zero. você vai estar sobre a costa com mais 15 milhas.

SR111 22h 23:39 - Roger, esquerda proa uno oito zero, Swissair 111 e, ah, mantendo dez mil pés.

Controle Halifax 22h23:46 - Afirmativo.

Controle Halifax 22h23:55 - Você estará a aproximadamente 35, 40 milhas do aeroporto, caso tenha que retornar depressa.

SR111 22h24:03 - Okay, grato. Informe quando pudermos iniciar o alijamento de combustível.

Controle Halifax 22h24:08 - Okay.

Soa então na cabine o alarme de piloto automático desconectado. O fogo no painel superior da cabine ganha intensidade e começa a afetar os circuitos elétricos, vitais para a operação da aeronave. As telas da cabine de comando apagam-se em rápida sucessão.

SR111 22h24:28 - Ah Swissair 111... Vamos ter de voar manualmente! Podemos voar entre 9 e 11 mil pés?

A comunicação já deixa claro que os pilotos do vôo 111 não mais tinham capacidade plena de controle do avião: os sistemas elétricos, que abasteciam os monitores da cabine de comando com as informações vitais: as telas da cabine apagam-se em rápida sucessão. Os pilotos passam a contar apenas com os sistemas primários, redundantes (análogos), de emergência. O piloto automático não funciona mais.

Controle Halifax 22h24:38 - Swissair 111 pode voar entre cinco e doze mil pés sem problemas.

SR111 22h24:45 - Swissair 111 heavy está declarando emergência. Podemos voar. entre. doze e cinco mil pés. Declaramos emergência! Horário é zero uno (GMT) dois quatro!

Controle Halifax 22h24:56 - Roger.

SR111 22h24:56 - Onze heavy iniciando alijamento. precisamos pousar imediatamente.

Controle Halifax 22h25:00 - Swissair 111 mais algumas milhas e estarei com vocês.

SR111 22h25:04 - Roger.

Em todas as transmissões, o controle de Halifax ouve nitidamente o som do alarme de auto-pilot desconectado. A situação na cabine de commando do MD-11 deteriora-se rapidamente. O co-piloto Loew repete a declaração de emergência.

SR111 22h25:05 - Swissair 111 heavy está declarando emergência!

Controle Halifax 22h25:08 - Entendido!

Controle Halifax 22h25:19 - Swissair 111 autorizado a alijar combustível. Informe quando tiver completado.

Controle Halifax 22h25:43 - Swissair 111 confirme autorizado a alijar combustível.

SR111 22h25:49 - Ahhh... nós...

Nesse momento, os gravadores de voz e de parâmetros de vôo do MD-11 param de funcionar. O fogo se alastra e destrói as conexões elétricas. O controle de Halifax chama repetidas vezes o Swissair, mas essa acaba mesmo sendo a transmissão final enviada e recebida desde o controle de Halifax. Os pilotos do MD-11 lutavam agora sozinhos, sem ajuda de solo. Voando sem instrumentos, numa noite escura, o gigantesco trijato sobrevoava a baixa altitude as pequenas cidades da costa canadense.

O comandante Zimmermann lutava para controlar o jato que voava às cegas. Com a máscara anti-fogo amarrada ao rosto, a cabine de comando totalmente desligada, a única maneira de tentar controlar o jato foi acendendo lanternas, tentando enxergar em meio à fumaça os poucos instrumentos análogos ainda funcionando. O jato então voava a 9.800 pés, pouco mais de 3.200m acima do mar.

Os minutos seguintes foram de grande agonia na cabine de comando. Por mais louvável que tenha sido a luta desesperada dos pilotos, somente um milagre poderia salvar os 229 ocupantes do Swissair 111. Por mais sete longos minutos, o Cmte. Zimmermann tentou lutar contra o fogo e a fumaça, que progressivamente eliminaram qualquer condição para a pilotagem. Sete minutos depois da interrupção da gravação, o HB-IWF mergulhou nas águas geladas do Atlântico norte, a 11 km da costa, no través de um pequeno vilarejo pesqueiro, Peggy`s Cove.

O jato bateu na água a 580 km/h, num ângulo pronunciado, o que deixa claro que não havia mais controle algum sobre o vôo. Tocando na água, o MD-11 explodiu numa fração de segundo, desintegrando-se completamente no impacto. O local da queda fica 56 km a sudeste do aeroporto de Halifax, para onde o jato conseguiria ter chegado com apenas mais 10 minutos de vôo.

Na manhã seguinte, quando finalmente equipes de resgate localizaram o local da tragédia, apenas 18 corpos desfigurados boiavam na superfície, em meio a um campo de destroços de 4,5 km quadrados. Os restos mortais dos outros ocupantes afundaram junto com as quase 200 toneladas do MD-11 suíço. Quatro dias depois, as caixas pretas foram recuperadas no fundo do mar, a uma profundidade de 50m. Nas semanas subsequentes, 98% do peso total estrutural da aeronave foi içado do leito do oceano.

Investigações subsequentes por parte da TSB - Transportation Safety Board - do Canadá, confirmam que o fogo foi provocado pelo atrito e subsequente curto-circuito de fiação do sistema de entretenimento de bordo. Os fios superaqueceram, o material de isolamento pegou fogo e este propagou-se pelo material de isolação termo-acústica da cabine, que no caso deste MD-11 era de material inflamável, o MPET - Metallized polyethylene terephthalate (Tereftalato Polietileno Metálico). Este material ajudou a propagar o fogo na região superior da cabine de comando, numa região localizada um pouco adiante, sobre e um pouco atrás da parede que separa o cockpit da cabine de passageiros.

Nos meses seguintes, um acalorado debate seguiu-se ao acidente. Os críticos perguntavam: porque os pilotos do SR111 não procederam diretamente para pouso, mesmo com fumaça na cabine? É fácil criticar. Mas o fato é que Zimmermann seguiu o manual: o MD-11 ainda estava acima do peso máximo de pouso. Uma aterrissagem de emergência, acima do máximo peso permitido, poderia ser igualmente perigosa, colocando em risco seus ocupantes e danificando a aeronave.

A tripulação do jato suíço inicialmente transmitiu a mensagem internacional de urgência (Pan Pan Pan) e não a de emergência (Mayday), pois acreditou que haveria tempo para pousar o MD-11 com segurança, dentro dos limites máximos de peso. Sendo assim, Zimmermann optou por alijar combustível, mesmo sabendo que, à razão máxima de alijamento de 2,500 litros por minuto, o procedimento tomaria preciosos 17 minutos. Zimmermann seguiu as regras e, portanto, não pode ser condenado.

Mas não podemos deixar de pensar na angústia e tensão a que os passageiros do SR111 foram submetidos. Ficou comprovado que as luzes da cabine principal foram desativadas pelos tripulantes técnicos, como manda o procedimento de emergência. Em completa escuridão, os comissários tiveram de utilizar lanternas para instruir os passageiros nos procedimentos de preparação para amerissagem: muitos corpos foram encontrados vestindo os coletes salva-vidas.

Família inteiras, casais em lua de mel, executivos retornando para suas casas após viagens de trabalho. As histórias eram muitas e distintas, mas o final foi o mesmo para todos: em completa escuridão, passageiros e tripulantes do SR111 enfrentaram seus últimos e angustiantes momentos antes do encontro final com as ondas geladas do Atlântico Norte.

Gianfranco Beting

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