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PA 806: tragédia no paraíso (Pan Am B707)
Improvisação não rima com aviação.
O velho ditado, comum entre os pilotos, indica que o estrito
cumprimento das regras - todas elas, o tempo todo - é algo
fundamental para garantir a segurança das operações. E, no
entanto, o relato do vôo PA 806 que você vai ler agora
mostra exatamente quais podem ser as conseqüências que
resultam da inobservância dessas regras, por menores que
sejam.
Trinta de janeiro de 1974, aeroporto de Auckland, Nova
Zelândia. Exatamente às oito horas e quatorze minutos de uma
agradável noite de verão, o Boeing 707-321 da Pan Am
decolava da Cidade das Velas, iniciando a longa jornada de
travessia transpacífica: o vôo PA 806 começava e então faria
escalas em Pago Pago, Samoa Americana, e Honolulu, Hawaii,
antes de concluir sua longa travessia transpacífica ao
pousar em Los Angeles. Duas escalas, duas ilhas
paradisíacas, um único e trágico destino.
Mais um vôo de rotina, especialmente para os profissionais
da "The World`s Most Experienced Airline", o slogan que a
Pan Am justificadamente adotava em suas campanhas
publicitárias. Aliás, em se tratando de Oceano Pacífico,
nenhuma outra empresa aérea chegava nem aos pés da
experência que a Pan Am tinha. O Pacífico só havia sido um
dia atravessado por via aérea graças aos esforços épicos da
Pan Am, uma saga de conquistas e ousadias sem paralelo em
toda a história da aviação comercial. Algo tão espetacular
que mereceu vários livros escritos especificamente sobre a
façanha.
Sendo assim, os 91 passageiros que embarcaram naquela noite
no Clipper Radiant, nome de batismo dado ao 707 de prefixo
N454PA, não tinham nenhum motivo para maiores preocupações.
A zelar por sua segurança e conforto estava a tarimbada
tripulação do comandante Leroy Petersen, 52 anos, 17.000
horas de vôo; dois co-pilotos, Rochard Gaines, 37 anos, com
5.000 horas de vôo; James Phillips, 43 anos e outras cinco
mil horas de experiência; e o engenheiro Gerry Green, que
tinha outras 3.000 horas nas costas. Na cabine de
passageiros, seis jovens comissárias trabalhavam naquela
jornada.
Na cabine de comando, a atmosfera não estava tão relaxada
como de costume. O comandante Petersen voltara a trabalhar
depois de 4 meses afastado por razões médicas. Petersen
fazia sua primeira viagem depois de ter sido requalificado
para comndar os Boeings 707 da Pan Am, uma medida necessária
e obrigatória depois de mais de 4 meses sem tocar nos
cotroles. A viagem de 10 dias entre os Estados Unidos e a
Austrália, que Petersen comandava, era sua primeira missão
após voltar ao trabalho. O primeiro oficial Gaines, sofrendo
de uma forte laringite, ocupava uma das cadeiras extras na
cabine - os jumpseats - tendo deixado seu lugar, na cadeira
da direita, para Phillips.
Mesmo assim, o princípio do vôo até Pago Pago foi
absolutamente normal. Depois de 3 horas e 40 minutos de
viagem, Phillips chamou a torre do aeroporto da capital de
Samoa e informou que o PA 806 encontrava-se a 160 milhas de
distância, na altitude de cruzeiro de 33.000 pés. O
controlador informou as condições meteorológicas:
visibilidade de 10 milhas, teto de 1.000 pés, chuva leve e
temperatura de 25ºC. Informou ainda o ajuste de altímetro,
1016 milibares. Dois minutos depois, o controle chamou o PA
806 e instruiu o Boeing a iniciar a descida direto ao VOR
Pago Pago. As 23h25, hora local, o controlador instruiu a
tripulação do 707 para o procedimento de descida:
Controle Pago Pago: Clipper 806, autorizado para o ILS da
pista 05. Bloqueio pelo arco de 20 milhas, reporte na
radial, livrando 5.000 pés.
Seis minutos depois, ao cruzar 10.000 pés, Phillips chamou o
controle e perguntou a direção e intensidade do vento. O
controlador informou que o vento variava de norte a 20º, com
intensidade entre 10 e 15 nós. As 23h35, Phillips comunicou
ao solo que o 707 já estava cruzando 5.500 pés e que o
Boeing havia interceptado a radial 226 do VOR de Pago Pago,
como instruído.
Controle Pago Pago: Clipper 806, inbound no localizador,
reporte três milhas fora, não há outro tráfego. Vento de 10
graus com 15 nós.
Cmte. Petersen: Ok, checando distância.
F/O Phillips: Oito milhas DME. avistando a pista.
Alguns segundos se passam. O 707, em sua aproximação final
começa a voar mais de 500 pés abaixo da altitude prescrita
na aproximação por instrumentos. O comandante Petersen não
estabiliza a aproximação como seria obrigatório, sem
conseguir manter o 707 no glideslope, a rampa imaginária que
leva uma aeronave com segurança à pista de pouso. Esse fato
não passava desapercebido ao primeiro oficial Phillips que
então comentou, alertando o comandante:
F/O Phillips: Dois mil pés.
Naquele momento, o Boeing 707 deveria estar a 2.500 pés.
Petersen então adicionou potência aos quatro motores e o som
de sua aceleração ficou gravado na caixa preta.
Cmte. Petersen: Ok, sete milhas. Volte aqui, seu desgraçado!
Nesse instante, o Cmte. Petersen acabava de dar uma "bronca"
no 707, ordenando ao jato que "voltasse" à rampa de planeio.
Em seguida, tentando talvez descontrair o ambiente, ou, mais
provável, disfarçar a sua performance abaixo do esperado,
fez um comentário espirituoso:
Cmte. Petersen: As coisas por aqui estão chacoalhando um
pouco, não?
Petersen referia-se à turbulência que o Boeing 707
encontrava, como se as condições externas fossem as únicas
responsáveis pela aproximação desestabilizada.
As 23h39, a chuva sobre o aeroporto tornou-se tão intensa
que o controlador não conseguia mais enxergar as luzes da
pista de pouso. O controlador, preocupado, chamou o Pan Am e
perguntou:
Controle Pago Pago: Clipper 806, está avistando as luzes da
pista?
Naquele momento, o Boeing estava a 2.000 pés de altitude e a
cinco milhas da cabeceira. O primeiro oficial Phillips
respondeu ao solo:
PA 806: Estamos recebendo seu VOR e avistando as luzes da
pista normalmente.
Controle Pago Pago: Confirme que está avistando as luzes da
pista?
PA 806: Afirmativo.
Controle Pago Pago: Estamos sob forte chuva por aqui e de
onde estou não posso vê-las!
PA 806: Estamos com 5 no DME (distante cinco milhas da
cabeceira) agora e elas continuam perfeitamente visíveis.
Controle Pago Pago: Ok, sem tráfego reportado, vento 030
graus com 20 nós, rajadas a 25 nós. Reporte livrando a
pista.
PA 806: Vento 030 graus com 20 - 25 nós. Reportaremos
livrando a pista.
Petersen então instruiu seu primeiro oficial:
Cmte. Petersen: Mantenha o olho na pista! Vou ficar
concentrado nas manetes aqui! Mantenha contato visual!
Mais alguns segundos se passaram e Petersen comandou então
flap 50, a configuração para pouso. Neste momento, a caixa
preta registrou também o início da chuva pesada batendo na
cabine e o início da atuação dos limpadores de para-brisa. A
aeronave estava agora a apenas duas milhas da cabeceira.
F/O Phillips: Ok, estamos sobre o NDB Logotala.
Nessa altura, a aeronave havia perdido contato visual com a
pista. Petersen, preocupado, instruiu seu primeiro oficial:
Cmte. Petersen: Me avise ao avistar.
Mais alguns segundos se passaram e sob a chuva forte,
Phillips conseguiu avistar novamente as luzes da pista:
F/O Phillips: Ok. avistando a pista. Você está um pouco
alto!
A caixa preta então gravou o som do estabilizador do 707
sendo trimado, regulado para abaixar o nariz do Boeing. O
que os tripulantes não sabiam é que a aeronave acabara de
entrar na armadilha mortal da temida Tesoura de Vento:
normalmente, o primeiro encontro com uma tesoura de vento
dá-se com vento de proa, o que na prática até ajuda a
aeronave a flutuar e em alguns casos, eleva sua altitude. A
reação natural de qualquer piloto é então a de reduzir
potência ou "trimar" a aeronave para abaixar o seu nariz.
O problema é que em frações de segundo, o vento muda de
direção e aumenta de intensidade, empurrando para baixo a
aeronave. Se esta tem a potência reduzida e o estabilizador
regulado para manter o nariz para baixo, a situação pode
tornar-se crítica e irrecuperável. Foi o que aconteceu
então.
Numa fração de segundo, a razão de descida do 707 passou de
690 pés por minuto para 1.500 pés por minuto. Esta razão
continuou pelos 16 segundos restantes, os últimos do vôo
PA806. O primeiro oficial Phillips não alertou o comandante
Petersen da abrupta aceleração na razão de descida, embora
fosse seu dever fazê-lo: a Pan Am instruía seus tripulantes
em aproximações ILS a alertar vocalmente qualquer razão de
descida superior a 800 pés por minuto abaixo de 2.000 pés ou
durante aproximações finais. Phillips, no entanto, estava
visivelmente desconfortável com a aproximação. Nos segundos
finais antes do impacto, apenas sua voz foi ouvida na
gravação:
F/O Phillips: 150 nós. Estamos nos mínimos. campo à vista.
vire, vire mais à direita. 140 nós.
Dois segundos depois, a gravação termina com o som dos
primeiros impactos do 707 contra árvores. Eram exatemente
23h40.
Dois minutos depois, o controlador procurava pelas janelas
da torre e não conseguia ver o Boeing. Após tentar contato
via rádio e não receber qualquer resposta da tripulação, o
controlador acionou o alarme de acidente no aeroporto. Pouco
antes, parentes que esperavam o vôo 806 e funcionários do
aeroporto, ouviram uma explosão e notaram em meio à forte
chuva, um brilho alaranjado, além dos limites do aeroporto.
Era o fim do vôo 806.
Os primeiros bombeiros que chegaram ao local - de difícil
acesso apesar da proximidade com o aeroporto - encontraram a
fuselagem do 707 relativamente intacta, mas totalmente
envolvida pelas chamas. O primeiro impacto deu-se a 1.180
metros da cabeceira da pista, contra árvores de mais de oito
metros de altura. O jato então foi progressivamente cortando
a espessa vegetação que encontrava à sua frente; ao final,
percorreu 240 metros no solo, parando a apenas 940 metros da
cabeceira, sem as pontas das asas, trens de pouso, quatro
motores e com a parte inferior da fuselagem seriamente
avariada pelos impactos.
Na verdade, apesar da severidade do impacto, vários
passageiros sobreviveram ao choque inicial e encontravam-se
vivos quando o Boeing finalmente terminou sua desabalada
carreira. Antes mesmo do Boeing parar, alguns dos
passageiros levantaram-se de seus assentos e correram em
direção às saídas dianteiras e traseiras. Alguns poucos,
mais lúcidos, utilizaram-se das saídas de emergência sobre a
asa direita, esta que provou ser a eunica saída utilizada
pelos poucos sobreviventes que conseguiram sair do Boeing
antes do fogo se alastrar. Mesmo estes, ao sair do jato,
encontraram-se no meio de uma armadilha infernal: enormes
labaredas por todos os lados. Em questão de dois minutos, a
nefasta combinação da fumaça tóxica, do intenso calor e das
chamas asfixiaram ou queimaram vivos aqueles que ainda se
encontravam no interior do Boeing.
Apenas nove passageiros e o primeiro oficial Phillips
conseguiram sair vivos do inferno. Phillips, na verdade, só
conseguiu escapar por ter ficado mais ferido na hora do
choque; seus companheiros de cabine de comando lutaram
primeiro para soltá-lo das ferragens e conseguiram fazer com
que ele saísse por uma fresta aberta pelo impacto na lateral
direita do cockpit. Os outros três tripulantes técnicos,
comandante Petersen, co-piloto Gaines e engenheiro de vôo
Green, pagaram um preço elevado por sua heróica atitude: não
conseguiram sair a tempo da cabine de comando. Seus corpos
calcinados foram retirados pelos bombeiros durante o
trabalho de resgate, ainda de madrugada.
Entre os 10 sobreviventes que foram resgatados pelos
bombeiros, todos sem excessão, sofreram sérias queimaduras.
Phillips lutou por sua vida por quatro dias antes de
sucumbir às queimaduras e ferimentos. Dos 101 ocupantes do
vôo PA 806, apenas 4 sobreviveram.
As lições que podem ser tiradas do fatídico vôo 806 são
muitas: aderir sempre, rigorosamente a todos os critérios e
normas operacionais. A tripulação do PA 806 não realizou uma
aproximação estabilizada, seja em altitude, atitude ou
velocidade. Nos 23 segundos finais do vôo, o Cmte. Petersen
passou a não mais olhar para seus instrumentos, tentando
completar visualmente a aproximação. Se estivesse de fato de
olhos grudadso em seu painel, teria percebido o repentino
crescimento na razão de descida. Seria difícil, mas ele
teria ainda alguma chance de reverter o afundamento do
Boeing.
A coordenação dos pilotos foi deficiente: Phillips não
ajudou Petersen como deveria, deixando de "cantar" as
velocidade, altitudes e excessiva razão de descida
experimentadas na fase final. E, em última análise, um fator
contribuinte foi o fato desta ter sido uma aproximação
difícil, crítica para qualquer piloto na ativa. E
certamente, mais difícil ainda para Petersen, que não voava
regularmente há mais de 5 meses.
Finalmente, o destino reservou para o Pan Am 806 um encontro
fatídico com uma Tesoura de Vento, justamente nos útimos
segundos antes do pouso, a fase mais crítica do vôo. O final
desta história dificilmente poderia ser diferente.
Gianfranco Beting