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LH540 Esquecimento fatal
A aviação é o meio de transporte
mais seguro do mundo por várias razões. Mas se existe uma
que pode ser considerada fundamental, é esta: a quantidade e
rigidez de suas normas e procedimentos.
Na condução de qualquer meio de transporte, procedimentos
normatizados, padronizados, são fundamentais para evitar
surpresas, impedir improvisações, coibir adaptações, expor
macetes. Esses procedimentos e regras são listados numa
seqüência lógica de operação. A isso se dá o nome de listas
de cheque ou check-lists.
Nenhuma outra atividade é tão dependente de cheques como a
aviação comercial. Uma regra de ouro da aviação é justamente
a aderência cega aos inúmeros check-lists obrigatórios
durante uma operação. Eles começam horas antes das
decolagens, quando tripulantes e passageiros ainda não
chegaram ao aeroporto. Eles continuam quando os tripulantes
assumem o vôo, antes das portas serem fechadas, antes dos
motores girarem, antes do taxi, antes da decolagem. Todos
estes ainda no solo.
E, paradoxalmente, é este caudal de procedimentos
absolutamente idênticos, repetidos por anos de operação, que
muitas vezes pode levar à uma condição natural do cérebro
humano: a acomodação. Quando confrontados com procedimentos
e impulsos repetititvos, naturalmente o cérebro humano sofre
um rebaixamento dos níveis de absorção de informações. Em
suma: a atenção é reduzida.
E é justamente para evitar que isto aconteça que os
check-lists nas cabines de comando são um trabalho de
equipe. Um tripulante "canta" em voz alta os ítens da lista,
enquanto os outros conferem. Foi justamente este, um pequeno
descuido num check-list corriqueiro, que teria gravíssimas
conseqüências para os passageiros de uma das mais seguras
empresas aéreas do mundo: a alemã Lufthansa.
Voltamos ao dia 20 de novembro de 1974. A manhã está apenas
começando no Aeroporto Jomo Kenyatta International (NBO) em
Nairobi, Quênia. Procedente de Frankfurt, o vôo LH 540
pousou no horário previsto. Nairobi é a primeira escala do
serviço, que tinha por destinação final Johannesburg, África
do Sul.
A tripulação trabalhando no vôo é composta por três
profissionais experientes: Comandante Christian Krack,
Primeiro-oficial Joachim Schacke e engenheiro de vôo Rudi
Hahn. Eles tinha a responsabilidade de pilotar o Boeing
747-130, matriculado D-ABYB. Batizado "Hessen" em homenagem
a um dos "landen" (estados) alemães, foi o segundo 747
entregue à companhia. Era um dos maiores motivos de orgulho
da frota da Lufthansa, que foi justamente a primeira empresa
for a da América do Norte a operar os Boeing 747.
Uma aeronave novíssima, o D-ABYB tinha apenas 4 anos de uso
e 16.781 horas voadas. Seus quatro motores Pratt & Whitney
JT9D-7 estavam entre os mais potentes em serviço na aviação
mundial. A bordo, dos 361 lugares dipsoníveis, menos de 50%
estavam efetivamente ocupados. O D-ABYB levava apenas 157
ocupantes, sendo 140 passageiros e 17 tripulantes.
Até então, nenhum 747 havia se envolvido em acidentes
fatais. O nível de segurança do majestoso "Jumbo Jet", como
era conhecido a época, era perfeito: 273 haviam sido
entregues. Até as 07h42 daquela manhã, quando os motores do
D-ABYB foram acionados, os 747 transportaram 193 bilhões de
passageiros-milhas sem sofrer um único acidente. Um nível de
100% de segurança que beneficiou os 75 milhões de
passageiros que até aquele instante haviam tido o privilégio
de voar na maior aeronave comercial de todos os tempos.
Mas naquela manhã, a impecável história dos 747 seria
marcada para sempre. Os pilotos esquecem de acionar um dos
sistemas pneumáticos do D-ABYB. Esse sistema é responseavel
pelo acionamento dos slats. Quando acionados, os slats se
distendem para a frente e para baixo, criando um perfil que
"represa" a camada de ar sob as asas, aumentando enormemente
a sustentação das mesmas. São fundamentais nos estágios
iniciais e finais de vôo, durante a decolagem e aproximação,
quando a velocidade é mais baixa e a necessidade de
sustentação é mais crítica. O 747 seria até capaz de voar
com slats guardados. Mas precisaria de uma corrida de
decolagem muito mais longa para ganhar a velocidade
necessária para sair do chão e ganhar altitude com
segurança.
Essa gritante falha operacional deveria ter sido detectada
pelos tripulantes do 747. Os três tripulantes na cabine de
comando não procederam ao check-list conforme prescrito nos
manuais de operação. O sistema pneumático desligado passou
desapercebido aos três tripulantes. Os 157 ocupantes do
Boeing não suspeitavam, naquele instante, que o vôo 540
seria muito curto. Entraremos agora na cabine de comando do
747.
Cap: Comandante Krack
F/O: Primeiro-oficial Schacke
F/O-RDO: transmissão de rádio do primeiro-oficial ao solo
F/E: Engenheiro de vôo Hahn
TWR: Torre de controle do aeroporto de Nairobi
TWR: "Lufthansa 540, torre Nairobi."
F/O-RDO: "540, prossiga."
TWR: "Você pode prosseguir para a cabeceira 06 ou 24, a
escolha é sua."
Cap: "Ah, peça a 24, ok?"
F/O-RDO: "Cabeceira 24, por favor."
TWR: " Entendido. Autorizado prosseguir para o ponto de
espera da cabeceira 24."
F/O-RDO: " Entendido. Autorizado ponto de espera da 24.
Autorizado ingressar na pista?"
TWR: "Lufthansa 540, afirmativo. Você pode ingressar e fazer
o backtrack." (taxiar pela própria pista no sentido oposto
ao da decolagem)
F/O-RDO: "Entendido, obrigado."
F/O: "Então, os flaps."
Cap: "Sim."
F/O: "Bem, posso ser eu o remador?" (fazer a decolagem)
Cap: "Por favor."
O engenheiro Hahn inicia o checklist.
F/E: "Checklist, freios."
F/O: "Estão checados."
F/E: "Flaps."
Cap: "Dez, dez, verdes."
F/E: "Controles de vôo."
Cap: "Checados."
F/O: "Estão checados."
F/E: "Yaw damper."
Cap: "Checados."
F/E: "Instrumentos de vôo e painéis de avisos."
Cap: "Sem avisos anunciados."
F/O: " Sem avisos anunciados aqui também."
Cap: "Cabine avisada e pronta."
F/E: "Checklist completo."
São exatamente 07h51. A torre de Nairobi chama o 747 com a
autorização de sua subida em rota:
TWR: "Lufthansa 540, para autorização."
F/O-RDO: "Prossiga."
TWR: "ATC autoriza Lufthansa 540, Nairobi para (o aeroporto
de Johannesburgo) Jan Smuts, aerovia Delta Ambar, transição
uno zero. Suba e mantenha nível 350 para o Mike Bravo,
subida por instrumentos Mbeya Echo. Autorização válida até
56, hora agora é 51. Coteje."
O primeiro oficial repete a autorização sem errar. Ao mesmo
tempo, os últimos ítens do check antes da decolagem são
completados, enquanto o 747 lentamente taxia rumo à
cabeceira 24.
F/E: "Take-off checklist completo."
F/O: "Okay."
O gigantesco Boeing 747, pesando exatamente 254.576 Kg,
chega à cabeceira 24 e executa um giro de 180º.
Perfeitamente alinhado com o eixo da pista, os pilotos do
747 têm à sua frente 4.177 metros de concreto e asfalto à
disposição para decolar. Na configuração normal de flaps e
slats estendidos, seriam mais do que suficientes para
permitir uma operação segura.
Mas, com seus slats recolhidos, o 747 nada mais é que um
pássaro condenado. Suas asas, desprovidas da sustentação
adicional que os slats permitem, não são capazes de
sustentar o grande jato para uma decolagem segura. Sobretudo
porque o aeroporto está situado a 1.624 m acima do nível
médio do mar. O ar rarefeito nessa altitude sustenta muito
menos do que a nível do mar. Some-se a isso a temperatura
naquele instante (26ºC), outro fator que contribui para
diminuir a sustentação. Nairobi é um exemplo típico da
combinação mais perigosa para as operações: um aeroporto
"Hot & High", situado em lugar de elevada altitude e sujeito
a altas temperaturas.
O drama do LH540 entra em sua fase definitiva no momento que
o primeiro-oficial Schacke imprime potência aos quatro
motores. A aceleração é normal. O 747 troveja pela pista sob
o brilhante sol que banha o Quênia. Com pouco mais de 20
segundos, o jato ultrapassa a primeira velocidade de
conferência, quando os velocímetros dos dois pilotos são
comparados.
F/O: "Oitenta." (80 nós de velocidade)
Cap: "Sim... Confere."
Mais alguns segundos se passam. Para os controladores
observando a decolagem do LH540, tudo parece normal. A bordo
do 747, a operação também parece ser rotineira. O jumbo
acelera normalmente até chegar ao "Point of No Return" como
anunciado pelo cmte. Christian Krack.
Cap: "V-1"
A partir desse momento, a decolagem deve prosseguir, mesmo
em caso de perda de um ou mais motores. Depois de
ultrapassar a V-1, a aeronave tem de prosseguir na
decolagem. Mesmo que sofra pane num dos motores, o
procedimento é um só: prosseguir na decolagem. Isso se deve
ao fato de que a aeronave já não tem mais condições de
abortar a decolagem com segurança na pista. Por isso mesmo a
V-1 também é conhecida como "Point of No Return".
Mas o problema que logo ameaçaria o D-ABYB não era falta de
potência. Era falta de sustentação, uma condição que só
seria percebida no instante em o jato tentasse sair do solo.
E isso aconteceria dois segundos depois, por volta das
07h54.
Cap: "V-R"
O primeiro-oficial puxa o manche para sí, erguendo o nariz
do 747. O jato, com quase 100 toneladas a menos que seu peso
máximo de decolagem, obedece docilmente. No entanto, tão
logo o nariz é erguido, com o ângulo de ataque pronunciado,
as asas do 747 entram numa condição aerodinâmica conhecida
como pré-estol. A estrutura do 747 começa a trepidar
violentamente, condição instantaneamente percebida pelo
comandante Krack.
Cap: "Atenção! Vibração..."
F/E: "Aqui está tudo normal."
Cap: "Vibração!"
O primeiro-oficial Schacke observa os parâmetros de motor e
constata que tudo está normal: as velocidades estão
conformes com os cálculos feitos antes da decolagem. Schake
parece acreditar que vibração deve ser originária de um
problema com uma das rodas. Talvez um pneu estourado ou algo
assim. O Boeing 747, desafiando seus limites, sai do chão.
Imediatamente após sentir que o 747 deixou o solo, solicita
ao comandante que recolha o trem de pouso.
F/O: "Trem em cima!"
Schacke observa as luzes no painel indicarem que os trens
estão sendo recolhidos. O 747 trepida violentamente,
deixando os três tripulantes surpresos e preocupados. O
primeiro-oficial comenta, em voz alta, como se estivesse
torcendo para que os segundos necessários para a retração
completa dos trens corressem mais rápido.
F/O: "Trem recolhendo!"
Ele sabia que, com os trens guardados, o 747 ficaria mais
"liso" aerodinâmicamente e poderia acelerar mais. Schacke
sentia que o 747 estava voando com enorme dificuldade, sem
ganhar altura normalmente.
F/E: "Parâmetros dos motores normais."
O engenheiro Hahn verifica a potência dos motores: tudo
normal. O fato do 747 não ganhar altura é percebido tanto
pelos tripulantes como pelos passageiros do 747. O
comandante Krack ainda não consegue entender o que acontece
ao 747 e se limita a dizer:
Cap: "Entendido!"
F/E: "RPM dos motores também normais."
Nesse exato instante, o 747 atinge 70 metros de altura sobre
a pista. Então entra num pré-estol. Apenas segundos depois
disso, o sistema de aviso de estol do 747 entra em
funcionamento. É o "stick-shaker", que vigorosamante agita a
coluna de controle dos dois pilotos, avisando-os de forma
inequívoca que a aeronave aproximava-se da velocidade
limite, quando as asas simplesmente deixam de sustentar o
avião. Alarmado, o engenheiro de vôo Hahn grita:
F/E: "Stick-shaker!"
O primeiro-oficial Schacke mantêm a frieza. Abaixa o nariz
do 747, tentando com isso fazer o jato ganhar mais
velocidade, e consequentemente, mais sustentação. No
entanto, o 747 já não tem mais como trocar altitude por
velocidade, pois está baixo demais. O 747 afunda em direção
ao solo. Percebendo o inevitável, Schacke pronuncia apenas:
F/O: "Okay, crash!"
Os gravadores a bordo da cabine do comando do 747 registram
os alarmes de trem de pouso recolhido soarem a bordo. Para
os computadores do 747, a velocidade do jato era
insuficiente para a retração dos trens. Eles estavam certos.
O 747 não poderia estar mesmo voando. O jumbo perde
altitude. Schacke institivamente ergue o nariz, para impedir
que a aeronave entre voando no solo. O enorme 747 chega ao
seu instante final. A exatos 1.120 metros depois do final da
pista, sua cauda toca num descampado. O Boeing inicia uma
corrida no solo, que dura apenas alguns segundos. Com mais
114 metros percorridos em solo, o enorme Boeing colide com
uma elevação no terreno. O impacto destrói sua estrutura,
que começa a se separar em grandes partes. A fuselagem e
parte das asas ainda se arrasta mais 340 metros, girando
180º antes de parar por completo.
Os destroços rapidamente são tomados pelas chamas dos
tanques de combustível rompidos pela colisão. Quatro
comissários e 55 passageiros não conseguem sair a tempo dos
destroços e sucumbem ao fogo, fumaça e escoriações
provocadas pelo acidente. Acaba de ocorrer o pior desastre
envolvendo aeronaves da Lufthansa em todos os tempos.
Nos meses subsequentes, as investigações apontaram duas
causas determinantes do desastre. 1- O esquecimento dos
tripulantes para acionar o sistema pneumático. 2- A falha em
perceber e corrigir este fato durante os check-lists.
Como fatores contribuintes, as autoridades apontaram a
necessidade da Boeing incluir alarmes sonoros nos 747 em
caso de não acionamento dos slats. A modificação foi
cumprida e incorporada em todos os 747. Os alarmes agora
soam toda vez que potência de decolagem é aplicada aos
motores com os slats recolhidos. Além disso, luzes de
advertência de "pressão insuficiente" no sistema pneumático
foram adicionadas às cabines de comando dos 747.
Mudanças que transformaram os veneráveis Jumbos nas mais
seguras aeronaves da categoria. Melhoramentos que, contudo,
chegaram tarde demais para os desafortunados passageiros do
Lufthansa 540.
© Gianfranco Beting / 2007