EDITORIAL  |  REPORTAGENS  |  FLIGHT REPORTS  |  AEROPORTOS  |  AERONAVES  |  COMPANHIAS AÉREAS  |  ACIDENTES

 

JAL 123 32 minutos de horror

Diz um ditado que Tokyo é a única cidade no mundo na qual, durante o verão, as pessoas andam e nadam ao mesmo tempo. O calor e a altíssima humidade, típicos da temporada, tornam desagradável a atmosfera na cidade e a tarde de 12 de agosto de 1985 não era exceção. Naquele dia, havia uma razão a mais para deixar Tokyo: a tradicional festa de Bon, um evento quase tão importante no Japão quanto o Ano Novo. O Bon começaria no dia seguinte e duraria 3 dias, algo raro no país do Sol Nascente, onde o normal são férias anuais de uma semana. O terminal do aeroporto de Haneda fervilhava. Quase todos os vôos saíam com lotação máxima e o JAL 123 não era exceção. Operado naquela tarde pelo Boeing 747-SR46 de prefixo JA 8119, ele ligaria Tokyo à cidade de Osaka, um vôo de pouco mais de uma hora. O mercado japonês é tão movimentado que vôos domésticos com Boeing 747 são rotina. Tanto assim que tanto a JAL como sua concorrente ANA operam versões especiais do Boeing 747 para vôos domésticos. O JA8119, por exemplo, é um SR, ou "Short Range" feito pela Boeing especialmente para vôos curtos. Com assentos apenas de classe econômica, a aeronave tinha 509 de suas 528 poltronas ocupadas quando o cmte. Masami Takahama, 49 anos, pediu autorização para pushback e acionamento de motores. Com mais 15 tripulantes, as portas do Jumbo, fabricado e entregue para a JAL em 1974, foram fechadas com 524 ocupantes, sendo que 12 eram crianças. Eram 18h04 quando Takahama ordenou que os motores fosse ligados. Um comandante senior, há três anos ele se ocupava de dar treinamento à outros pilotos em transição para comando, como era o caso neste vôo. Takahama tinha 12,500 horas de vôo em 19 anos de carreira e era, portanto, experiente e respeitado por seus colegas na JAL. Naquele vôo, estaria sentado à direita, enquanto o co-piloto em instrução para comando estaria ocupando o assento da esquerda. Taxi iniciado, o JA8119 rumava para a cabeceira 15L, aguardando sua vez na fila de jatos. O plano de vôo do JL 123 previa uma subida direta para o nível 240 (24.000 pés) e sobrevôo de Mihara, Hakone, no través do sagrado Monte Fuji, entrando na aerovia W27 para Kushimoto, aerovia V55 para Shinota e finalmente, Osaka. Tempo estimado de vôo de 54 minutos. Eram 18h12 quando Takahama liberou os freios e o 747 iniciou sua decolagem. O 747 decolou vigorosamente, pois levava pouco combustível, para apenas 3h15 minutos de vôo. Eram 18h17 quando o JL123 solicitou ao Controle de Tokyo uma rota mais direta, sendo atendido depois de alguns segundos. O controlador observava o progresso do JL 123, que já cruzava a 24.00 pés, quando, as 18h25 o código 7700 (emergência) foi acionado no transponder do Jumbo. O controlador mal teve tempo de perceber a mudança quando recebeu a primeira mensagem do 747. JAL 123:Tokyo, JAL 123. Solicito imediato. problema. solicito imediato retorno a Haneda e descer para nível 220. Controle Tokyo: Roger. aprovado como solicitado. JAL 123: Solicita um vetor direto para Oshima. Controle Tokyo: Voe na proa 090, direto Oshima. JAL 123: Ok, mas sem controle agora. Sem controle! Foi então que o controlador percebeu que havia algo de muito errado com o JL 123. Ao invés da curva de 177º, o Boeing descreveu uma curva de apenas 50º para a direita. Dentro do Boeing, a tripulação do Cmte. Takahama lutava contra o 747, que voava totalmente descontrolado. Minutos antes, mais precisamente as 18h24, o Jumbo simplesmente perdera todo o seu estabilizador vertical. Em 1978, o JA 8119 havia feito um pouso duro e batido com a parte inferior da fuselagem traseira na pista do aeroporto de Osaka, para onde o vôo 123 destinava-se agora. O Boeing foi então retirado de serviço e por alguns meses, foi reparado por um time de técnicos da JAL, supervisionado por engenheiros da própria Boeing. Dado como seguro para voltar a voar, o 747 entrou novamente em operação e assim voou pelos 7 anos seguintes, até aquela fatídica tarde. O que ninguém sabia, entretanto, é que a despeito de todos os cuidados tomados, o reparo havia sido mal feito. Quiz o destino que naquela tarde quente e abafada, o reparo chegasse ao seu limite. Deu-se por fim a fadiga do metal usado para unir as placas substituídas. Como uma costura que se rasga, o metal cedeu, provocando uma súbita e violenta ruptura na fuselagem, que por sua vez atingiu o cone de pressurização da cabine. Como uma bomba, a estrutura rompeu-se sob o efeito da diferença de pressão entre o interior da cabine e o ar externo, rarefeito. A sequência de explosões rompeu a fixação do reparo feito no 747. Como um trágico jogo de dominó, o próximo efeito foi que a base de fixação da cauda desprendeu-se, despedaçando e deixando o 747 sem a cauda, virtualmente sem a mais remota chance de controle. Ou será que não? Na cabine de comando, Takahama assumiu o controle do jato, ou melhor, o que restava dele. Sem a cauda, o 747 balançava de um lado para outro, sem controle no eixo vertical, horizontal ou lateral. Como um paralelepípedo, o jato somente se mantinha em vôo pela velocidade que seus quatro motores forneciam. E foi com eles que Takahama tentou o impossível: trazer o 747 de volta a Tokyo. Até aquele momento, pouco se sabia dentro da cabine de comando as razões da falha, o que poderia ter causado a perda súbita de toda pressão hidráulica e as dificuldades de manejo: em segundos, sem os três sistemas hidráulicos redundantes do 747 havia perdido toda a pressão, tornando inoperantes os controles de vôo básicos: o 747 não contava mais com os ailerons, leme e profundores. Segundos após a explosão, um comissário interfonou para a cabine de comando e informou que uma forte explosão havia sacudido a parte de trás da cabine de passageiros e que havia despressurização. Takahama escutou quando seu engenheiro de vôo foi informado do que havia acontecido. Sem outra opção, Takahama começou então a variar a potência dos motores, tentando fazer que o 747 ganhasse ou perdesse altura, e, variando a potência entre os motores de cada uma das asas, fizesse curvas. Missão impossível. O movimento do 747 entrou numa oscilação continua, chamada em física de oscilação fugóide. Como um gigantesco pêndulo, o 747 subia e descia 1,500 metros a cada 90 segundos, fazendo com que o nariz da aeronave variasse entre 15º para cima e 5º para baixo, bem como a velocidade, que oscilava de 200 a 300 nós. As asas moviam-se 50º para cima ou para baixo em ciclos de apenas 12 segundos. O 747 voava como uma folha seca ao vento. Dentro da cabine de passageiros, a atmosfera era de absoluto terror. Quando situações de pânico extremo acontecem, ao contrário do que mostram os filmes, a maioria das pessoas entram num estado conhecido como "pânico negativo": ficam imóveis, caladas, olhos fechados ou vidrados, incapazes de se mover ou emitir sons. O cérebro entra em curto-circuito e se recusa a processar a dura realidade, a confrontar a real iminência da morte. Era o caso. Choros abafados, alguns soluços e nada mais. Nenhuma histeria, apenas o mais profundo e incapacitante terror. Mover-se pela cabine era impossível, pois o próprio movimento oscilatório da aeronave prendia os passageiros aos seus assentos. Além disso, com a entrada de ar frio, externo, a atmosfera dentro da cabine ficou turva como num denso neovoeiro. Se os passageiros mal podiam manter-se de pé, ao menos alguns deles podiam escrever. Muitos o fizeram: mais de 30 cartas de despedida foram escritas durante os 32 longos minutos que o JL 123 lutou contra seu destino. De volta à cabine, o Cmte. Takahama chamou o Controle de Tokyo. 18h33 - JAL 123: Solicito retorno imediato para Haneda. Controle de Tokyo: Você está a 72 milhas de Nagoya. Pode pousar em Nagoya? 18h33 - JAL 123: Solicito retorno para Haneda. Takahama lutava desesperadamente pela sobrevivência. A velocidade do 747 era um problema, pois ele começava a querer descer. Sem flaps, Takahama ordenou que os trens fossem soltos pela própria gravidade, pois o acionamento pelo sistema hidráulico, ele já não podia usar. Os trens baixaram com um estrondo e reduziram a velocidade do Jumbo, bem como diminuiram a intensidade das oscilações fugóides. O controlador em Tokyo observava na tela do radar a trajetória e altitude do JL 123. 18h47 - Controle de Tokyo: JL123, você já consegue controlar a aeronave? JAL 123: Negativo. Incontrolável. Mal terminou de dizer isso, a tripulação do 747 deparou-se com montanhas. Alarmado, Takahama ordenou: Cmte. Takahama: Uma montanha! Curva à direita! Vamos bater na montanha! Acelere! Co-piloto: Oh, não! O 747 estolou, descontrolado. Sua velocidade caiu para 108 nós. A aeronave entrou num mergulho mas, por milagre, acabou saindo sozinha. Cmte. Takahama: Potência máxima! Engenheiro de vôo: Estamos ganhando velocidade! Cmte. Takahama: Continue tentando! Os esforços deram certo. O 747 acelerou para 220 nós, e então Takahama comandou a atuação elétrica de emergência dos flaps, que desceram para a posição de 5º. Esse processo levou quase 4 minutos, período durante o qual o 747 subiu para 11.000 pés. Takahama então foi chamado pelo copntrole de Tokyo: 18h51- Controle de Tokyo: JAL 123, sua posição é de 45 milhas a noroeste de Haneda. Cmte. Takahama: Noroeste de Haneda? Ok, ok. Quantas milhas? Controle de Tokyo: Er... 55 milhas de Haneda, 25 de Kumagaya. Estamos prontos para seu retorno a qualquer momento. A Base Aérea de Yokota também está pronta para recebê-los! O Cmte Takahama não respondeu. Na cabine de commando do 747, a situação fugia rapidamente de controle. Com as montanhas perigosamente por perto, o 747 descia à uma razão de 1,350 pés por minuto. Takahama aproximava-se de sua batalha final. 18h55:04 - Cmte. Takahama: Flap set? Co-piloto: Sim, flap 10. 18h55:10 - Cmte. Takahama (agitado): nariz em cima! Nariz em cima! Nariz em cima! Co-piloto: nariz em cima! 18h55:42 - Cmte. Takahama: Ei! Segure o flap! Não dê tanto flap! Flap Up! Flap Up! Flap Up! A gravação do CVR, Cockpit Voice Recorder, começa a registrar o som das turbinas do 747 refletido nas montanhas que o 747 sobrevova a poucos metros dos cumes. Ouve-se claramente a aceleração dos motores, mas o nariz do 747 continua teimosamente para baixo, a despeito de todos os esforços dos tripulantes. O ensurdecedor ruído de vários alarmes soando pela cabine de comando, somado ao ruído dos motores em potência máxima cria uma cacofonia angustiante. O desespero dos tripulantes fica gravado para sempre na caixa preta. Eles agora apenas gritam entre sí. 18h55:55 - Cmte. Takahama: Power! Power! Flap! Co-piloto: flap em cima! O JAL 123 e seus 528 ocupantes não têm mais salvação. O Jumbo entra no seu derradeiro mergulho, girando 200º em seu eixo e entrando numa descendente abrupta, nariz firmemente apontado para baixo. Começam a soar pela cabine os alarmes gravados no sistema GPWS: Sink rate! Sink rate! Pull Up! Pull Up! 18h56:06- Cmte. Takahama: Power! No Cockpit Voice Recorder, ouve-se então nitidamente o som do primeiro impacto da asa esquerda contra a copa de árvores. Mais dois segundos e chega ao fim a gravação: o 747 explode contra o monte Osutaka, de 5,400 pés de altura. O impacto deu-se a aproximadamente 200m abaixo do pico e à uma velocidade de 140 nós. Os tanques de combustível do 747 romperam-se imediatemente e um gigantesco incêndio tomou conta da área. Já estava escuro na hora do acidente e as equipes de socorro só chegariam ao remoto local da tragédia no alvorecer do dia seguinte. Para incredulidade total dos socorristas, 4 passageiras (duas delas, crianças de12 e 8 anos) foram retiradas com vida e sobreviveram. Estavam todas elas sentadas nas últimas fileiras do 747. Com 524 dos 528 ocupantes mortos, este foi o segundo maior desastre em número de vítimas na história da aviação e o maior envolvendo uma única aeronave. O Presidente da JAL, Yasumoto Takagi, demitiu-se da empresa em respeito às vítimas, costume que é tradição no Japão. Um gerente de manutenção da JAL foi além: deixando uma carta de despedida e de desculpas, suicidou-se. Ele foi a última vítima fatal do JAL 123.

Gianfranco Beting