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Delta 191: Windshear! (Tristar)

Fazia uma abafada tarde de verão, naquele 21 de agosto de 1985, quando o telefone tocou no centro de operações da Delta Air Lines em Atlanta, Geórgia, Estados Unidos. A notícia era horrível: um jato da empresa havia caído segundos antes do pouso em Dallas. Não havia ainda confirmação da aeronave e do número do vôo, mas aparentemente, tratava-se de um L-1011 Tristar. O operador que atendeu o telefonema imediatamente correu para avisar o chefe de operações. Ele recebeu a notícia com incredulidade: "Não pode ser. Os Tristar não caem."

Essa era a medida exata do grau de confiança e respeito que praticamente todos, na Delta e em outras empresas, nutriam pelo trijato da Lockheed. O grande trijato para 300 passageiros até então sofrera apenas dois acidentes fatais em quase 14 anos de carreira. Em nenhum deles, por falha da aeronave.

De fato, naquela tarde, o Lockheed Tristar, de prefixo N726DA, não caiu. Ele foi derrubado, varrido dos céus por uma força sobre-humana. A da temível e potencialmente fatal Windshear (literalmente, Tesouras de Vento).

As Tesouras de Vento são um fenômeno meteorológico que, embora não fossem desconhecidas, ainda não eram compreendidas completamente. Eram quase tratadas como um desígnio de Deus, algo quase imprevisível. Sua formação, suas conseqüências - letais - para a aviação ainda não haviam sido compreendidas. O primeiro a estudá-lo com afinco foi um meteorologista norte-americano, Dr. Theodore Fujita. O cientista estudou, classificou as Windshears e até criou uma tabela de intensidade do fenômeno, (Escala Fujita) para medir sua severidade. Fujita apontou caminhos para identificar a presença de Tesouras de Vento, primeira atitude para combatê-las.

Todo esse esforço veio a criar medidores da presença de Tesouras nos aeroportos e até mesmo em aeronaves. Mas somente após a tragédia do vôo 191 da Delta é que as autoridades da indústria começaram a tratar com mais afinco o problema.

Basicamente, Tesouras de Vento se formam na base das nuvens CB (Cumulus Nimbus) que estão próximas ao solo. Do centro da nuvem, uma espécie de torre de ventos de fortíssima intensidade sopra em direção ao solo. Ao bater no chão, formam-se rajadas de intensidade considerável, quedesmancham-se em várias correntes e retornam em direção ascendente, soprando em várias direções.

Uma aeronave que trava contato com uma Tesoura de Vento, inicialmente encontra essas correntes ascendentes. Para manter a razão de descida ou simplesmente a mesma altitude, os pilotos naturalmente têm de reduzir a potência dos motores, pos as correntes descendentes "ajudam" a na sua sustentação. O problema é que, instantes depois, as aeronaves encontram com a torre de vento central, que sopra de cima para baixo, com intensidade muito maior que as correntes ascendentes. Como os motores a reação demoram alguns segundos para reagir, normalmente as aeronaves que penetram em cheio numa Tesoura de Vento têm pouca ou nenhuma chance para reagir a tempo e escapar. Isso, quando a tripulação identifica o fenômeno.

Agora que explicamos de forma bastante resumida o funcionamento de uma Tesoura de Vento, vamos acompanhar as suas nefastas conseqüências. Você vai voar conosco neste Blackbox junto aos tripulantes do vôo Delta 191.

A transcrição começa com a tripulação discutindo desvios de rota, necessários para evitar as pesadas formações de Cumulus Nimbus que rodeavam a região do aeroporto. O co-piloto é quem está nos controles. O comandante do vôo está cuidando dos rádios e de auxiliar seu co-piloto.

DFW Torre do aeroporto Dallas-Forth Worth
Cap Comandante do vôo 191
F/O Primeiro Oficial
F/E Engenheiro de Vôo

F/O: Seria ótimo se pudéssemos desviar para o sul da dois-cinco (pista).
Cap: Alguém na nossa frente tentou e não conseguiu. O controle está mandando todo mundo para um corredor de 12 milhas de largura, por onde está sendo possível passar.
DFW: Delta 191, desça e mantenha 10.000 pés, altímetro dois nove nove um. Sugerimos proa 250 para desvio, quem passou por alí reportou que foi tudo tranquilo.
F/E: Essa é pra gente, pessoal.
Cap: (falando para a Torre) - Ah, nós estamos vendo uma grande célula, ah, na proa aproximada de 255. Ela é bem grande e não gostaríamos de ter de atravessá-la. Gostaríamos de desviar por um lado ou pelo outro.
DFW: Você pode desviar pelo sul. Já passaram uns 60 aviões pela área e não tiveram maiores problemas. Autorizado desviar pelo sul.
Cap: Estou vendo uma grande célula na proa dois quatro zero.
DFW: Ok, então vamos desviar vocês. Será aproximadamente pela radial zero um zero.
F/O: (falando para o comandante) - Acho que ele vai nos desviar antes de toparmos com aquela monte de células (nuvens de tempestade ou CBs) alí.
Cap: Peça para as meninas (comissárias) se sentarem, ok?

Nesse instante, o som da campainha de aviso de cabine, usado para avisar os tripulantes da iminência do pouso, é gravado no CVR - Cockpit Voice Recorder.

DFW: Atenção aviões na área. Há uma tromba d`água ao norte do aeródromo.

Mais cinco minutos de vôo e a tripulação inicia o check pré-pouso. O Tristar já voa a 5.000 pés e nota que terá de atravessar uma célula de bom tamanho antes de pousar.

DFW: Delta 191, voe na proa um nove zero, e farei vocês retornarem (girar curva base) em mais algum segundos.
F/E: Tantas voltas por nada.
F/O: (observando as células à sua frente) - Nosso avião vai ser lavado.
Cap: O que?
F/O: Nosso avião vai ser lavado.

DFW: Atenção aviões na área. Estamos reportando a presença de rajadas de ventos fortes, de intensidade variável, devido às chuvas ao norte de DFW.

F/E: A "coisa" (tempestade) está chegando.
Cap: Cento e sessenta é a velocidade.
Cap: Torre, Delta 191 aqui no meio da chuva, vai tudo bem.
F/E: Trem de pouso. (baixar)
DFW: Delta 191, pista uno sete esquerda, livre pouso, vento 090 com rajadas de 15 nós.
F/O: Ok, trem de pouso?
Cap: Baixado, três verdes (referência às tres luzes verdes no painel, que indicam que o trem de pouso está baixado e travado).
F/E: Flaps, slats.
F/O: Cruzando 1.800 pés.

Som do alarme de altitude soa na cabine.

F/O: Tem raios saindo daquela (nuvem) alí.
Cap: O que?
F/O: Tem raios saindo daquela alí.
Cap: Aonde?
F/O: Bem em frente... Agora não dá mais para desviar.
F/E: Mil pés.
F/O: Cruzando 1.000 pés.
Cap: Olha a sua velocidade!

Nesse exato instante, o Tristar da Delta entrou na célula, na gigantesca nuvem de Cumulus Nimbus que estava produzindo a Tesoura de Vento. Os efeitos no desempenho do jato foram imediatos. A velocidade despencou, pois o Tristar penetrou em cheio na torre de vento que brotava do centro da base da nuvem. A Tesoura de Vento começou a empurrar a aeronave de encontro ao solo. Tudo aconteceu em segundos. O comandante, observando as ações do co-piloto, pode apenas comentar o drama que via acontecer diante de seus olhos.

Cap: Você vai perder tudo de repente! Taí... Puxe! Puxe (o manche) com tudo! Puxe tudo para cima!
F/O: Puxando tudo pra cima!
Cap: Tudo para cima! Tudo para cima!

Nesse instante, o som dos motores sendo acelerados é gravado no CVR.

Cap: Taí! Segure esse desgraçado!
F/O: Qual a V-REF? (Velocidade de cruzamento da cabeceira)
Cap: TOGA!

Essa instrução dada pelo comandante é uma sigla que significa Take Off-Go Around (TOGA). Trata-se da máxima potência dos motores, para ser aplicada durante emergências e arremetidas. Com essa curta palavra, o comandante do Delta 191 deu uma instrução inequívoca para seu co-piloto: abandonar o pouso e arremeter.

Nesse instante, o som do GPWS (Ground Proximity Warning System) ficou gravado no CVR.

GPWS: Whoop, Whoop! Pull up! Pull Up!
Cap: Puxe tudo para cima!

A gravação termina três segundos depois, com os sons dos primeiros impactos. O Tristar tocou no solo, antes dos limites do aeroporto, a 2,100m da cabeceira da pista. O primeiro contato foi com a ponta da asa e com o motor esquerdo, que colidiram com automóveis numa estrada vicinal que leva ao aeroporto. Dois carros foram destruídos e os seus ocupantes, mortos.

Em seguida, o Tristar bateu definitivamente contra o solo e numa fração de segundos começou a se desintegrar. Os tanques de combustível se romperam e em alguns segundos, o plácido descampado próximo da pista transformou-se num mar de fogo. Em seguida, a parte principal da fuselagem bateu contra um dos tanques de água que alimentam o aeroporto. Foi nesse lugar que se concentram a maioria dos destroços. Várias explosões ocorreram em seqüência, matando muitos dos passageiros que sobreviveram aos impactos iniciais.

No minuto seguinte ao desastre, a grande nuvem que provocou o desastre deixou sua marca. Uma chuva torrencial começou a cair sobre os restos do Tristar, e colaborou, ainda que modestamente, para diminuir a propagação do fogo. Passageiros sentados após as asas tiveram mais sorte, e atráves de grandes aberturas na fuselagem, conseguiram pular dos destroços em chamas e correr para longe do inferno. Minutos depois, as equipes de emergência do aeroporto de DFW chegaram ao local. Iniciaram o combate ao fogo e as desesperadas tentativas de resgatar os feridos, muitos deles ainda presos às ferragens em chamas.

Dos onze tripulantes a bordo, apenas três comissários, todos sentados na região da cauda, sobreviveram. Dos 152 passageiros, apenas 26 escaparam com vida. Esse não foi o primeiro, nem o último vôo comercial derrubado por uma Tesoura de Vento. Mas foi o primeiro jato wide-body perdido no confronto com o temível fenômeno. Mais uma vez, o preço cobrado para transformar a aviação comercial no mais seguro meio de transporte foi alto: a perda de 129 vidas.

Gianfranco Beting

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