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AF4590 Pássaro Ferido

O dia 25 de julho de 2000 era típico dos quentes e gloriosos verões parisienses. Um céu azul e um sol intenso banhavam toda a região de Paris, de onde sairia um vôo especial, o Air France AF 4590.

Naquela tarde, o Concorde matrícula F-BTSC, decolaria do aeroporto de Charles de Gaulle em Paris com destino a New York, aeroporto John F. Kennedy International, levando 100 turistas, a maioria alemães, que haviam fretado o supersônico para o início de doze dias de ferias, que continuariam num cruzeiro marítimo.

Além dos 100 turistas, estariam a bordo 2 comissários, quatro comissárias e os três tripulantes técnicos: Comandante Christian Marty, 54 anos, piloto de Concorde há três anos; Primeiro Oficial Jean Marcot, 50 anos, há 11 no Concorde; engenheiro de vôo Gilles Jardinaud, 58 anos, com três anos de serviço no supersônico.

Marty não era um ser humano comum, e não apenas por figurar entre a verdadeira elite de sua profissão, como piloto comercial supersônico. Casado, pai de dois adolescentes, em 1982 ele havia superado um desafio notável: atravessou o Atlântico Norte numa prancha de windsurf. Por longos 37 dias, 16 horas e vinte e cinco minutos, ficou preso à sua prancha, dormindo amarrado à ela, de maneira a poder comprovar a façanha de atravessar o Oceano Atlântico numa prancha de surfe. Essa façanha deixa claro que o cmte. Marty possuía uma força de vontade excepcional. Marty também era muito respeitado por sua coragem e tranquilidade para lidar com situações extremas. Naquela tarde de julho de 2000, Marty levaria apenas três horas para fazer a mesma travessia, pilotando o Concorde.

Jean Marcot era apaixonado pelo Concorde. Tanto assim que se recusou a assumir o comando em outros tipos de aeronave, preferindo permanecer pelo resto de sua carreira como co-piloto no supersônico. Marcot dizia que preferia morrer a ter de pilotar outra aeronave que não o Concorde. "Acima de mim, apenas os astronautas" dizia sem disfarçar o orgulho que sentia em pilotar o supersônico.

Esses profissionais apresentaram-se poouco depois do meio dia no centro de despachos da Air France, próximo do aeroporto. Chegaram ao Concorde de matrícula F-BTSC por volta das 14h00 e iniciaram os longos procedimentos de verificações e checks que antecedem cada vôo do complexo supersônico. Essa aeronave em particular já registrava 25 anos de uso. Construída em 1975, tinha 4.873 ciclos e 11.989 horas de vôo.

Durante os preparativos para o vôo, indicaram aos mecânicos da Air France a necessidade de duas ações não programadas: a troca do motor pneumático do reversor do motor número dois; a substituição de um sistema do trem de pouso esquerdo. Estes procedimentos provocaram um atraso na partida de mais de uma hora. Esse atraso teria conseqüências trágicas.

Finalmente, com os 109 ocupantes a bordo, o primeiro oficial Marcot solicitou autorização para iniciar a viagem. Pesando no momento da decolagem 186,9 toneladas, com 95 toneladas de combustível contabilizadas nesse total, o Co ncorde estava no seu peso máximo permitido.

As 16h37, entrou na pista 26R (4.217m) para iniciar o vôo CO 55 com destino a Newark, o DC-10-30 de prefixo N13067, pertencente à Continental Airlines. A veterana aeronave, fabricada em 1973, já contabilizava 27 anos de serviço e começava a mostrar a idade com sinais nada agradáveis: durante sua corrida de decolagem, um pedaço de metal, usado na fixação de um dos motores, desprendeu-se e no meio da pista, como uma lâmina, pronta a cortar quem por sobre ela ousasse passar.

Quiz o destino que o pneu dianteiro direito do trem de pouso principal esquerdo do Concorde passasse justamente por cima da peça. A peça, feita de titânio rasgou um dos pneus do Concorde. Pedaços de metal e borracha foram arremessados contra a parte inferior da asa, rompendo a delgada pele metálica do intradorso e perfurando o tanque de combustível nº 5. Pressurizado, o tanque começou a jorrar o JP4 em ritmo acelerado para fora da asa. As chamas resultantes da pós-combustão dos quatro motores Olympus ou mesmo um eventual curto circuito próximo da baía do trem de pouso fez com que o combustível que escapava entrasse em ignição. Em segundos, a asa do Concorde ardia como uma tocha acesa.

Vamos agora acompanhar os últimos momentos do vôo AF4590, com a reprodução dos diálogos gravados na caixa-preta do supersônico.

16h42:17.00 - Torre CDG: Air France quarenta e cinco noventa, autorizado livre decolagem, pista 26 direita, vento zero noventa, oito nós.
16h42:21.16 - Primeiro oficial: Quarenta e cinco noventa, autorizado livre decolagem, pista 26.
16h42:24.21 - Comandante: Todo mundo pronto?
16.42:25.19 - Primeiro oficial: Sim.
16.42:26.00 - Engenheiro: Sim.
16.42:26.15 - Comandante: Vamos para 100, V1 e 150.

Christian Marty acelera os quatro motores Olympus 593, abrindo o máximo de potência e ligando os sistemas de pós-combustão, que injetam combustível no bocal de saída de cada motor, aumentando a potência, o ruído, e principalmente, o consumo. Quando 100% da força é alcançada, o cmte. Marty indica o início da corrida de decolagem, com a curta palavra a seguir, ao mesmo tempo que solta os reios do Concorde:

16.42:31.00 - Comandante: Top.

16.42:31.07 Neste momento, os microfones de cabine registram a mudança no som na cabine. Com os freios soltos, os motores, acelerados ao máximo, começam a permitir a rápida aceleração na pista. Quatro segundos mais tarde, uma voz não identificada, externa ao Concorde, é ouvida na fonia, como que incentivando o comandante Christian Marty:

16.42:35.08 - Transmissão VHF: Vamos, Christian!

16h42:43.08 - Engenheiro: Temos os quatro afterburners.
16h42:54.16 - Primeiro oficial: Cem nós.
16h42:55.13 - Comandante: Confirmado.
16h42:57.00 - Engenheiro: Quatro (luzes) verdes. (os quatro motores a plena potência)
16h43:03.17 - Primeiro oficial: V-1.
16h43:07.00 - Começa neste instante um som de baixa freqüência.
16h43:11.22 - Comandante: (*) - ininteligível.
16h43:13.00 - Primeiro oficial: Atenção.

O diálogo anterior mostra que na cabine de comando, coisas começam a acontecer fora do previsto. No instante seguinte, a torre de controle de Charles de Gaulle alerta os tripulantes do AF4590 que a emergência que eles começam a enfrentar é mesmo séria.

16h43:13.09 - Torre CDG: Concorde quarenta e cinco noventa, você tem chamas, você tem chamas atrás de você.
16h43:16.03 - Transmissão VHF: Direita!
16h43:18.20 - Primeiro oficial: Roger.
16h43:20.11 - Engenheiro: Pane no motor número dois.

16h43:22.21 - Começa a soar o alarme de incêndio do motor. Uma voz não identificada entra na freqüência, e comenta:
Está queimando muito, hem?

16h43:24.20 - Engenheiro: Corte o motor número dois.
16h43:25.19 - Comandante: Procedimento de fogo no motor!

16h43:26.19 - Cessa o alarme de fogo.

16h43:27.04 - Primeiro oficial: Atenção! Olha a velocidade! Velocidade!

O Primeiro oficial refere-se certamente à brutal desaceleração que o Concorde começa a sofrer. Não apenas o motor dois havia sido cortado, como o motor número um começa também a falhar e não render toda a potência necessária para a decolagem. Alarmado, o Primeiro oficial alerta mais uma vez:

16h43:28.05 - Primeiro oficial: Velocidade!

O horrível espetáculo do pássaro branco em chamas mobiliza as atenções de todos no aeroporto. Outra voz entra na freqüência, como se o comentário pudesse alertar os tripulantes do AF 4590.

16h43:28.17 - Está queimando muito mesmo, mas não tenho certeza se o fogo está saindo do motor!

Dentro da cabine de comando do Concorde, não há tempo para o medo: os procedimentos de emergência tomam toda a atenção dos três tripulantes. Ouve-se claramente o botão e o sistema de extinção de fogo ser acionado.

16h43:30.00 - Comandante: Trem de pouso recolhendo.

16h43:31.15 - Torre CDG: Quarenta e cinco noventa, você tem chamas atrás de você.

16h43:34.17 - Primeiro oficial: Entendido.

Na barriga do pássaro, o estrago é grande. A porta do trem de pouso esquerdo, em conseqüência do fogo, não se abre, impedindo a retração completa das rodas, o que contribui para desestabilizar o supersônico e para aumentar o arrasto. O engenheiro de vôo percebe a indicação.

16h43:35.13 - Engenheiro: O trem de pouso não...

16h43:37.08 - Torre CDG: Segundo sua conveniência, vocês tem prioridade para retornar.

16h43:37.18 - Engenheiro: O trem de pouso!
16h43:38.10 - Primeiro oficial: Não?
16h43:39.00 - Comandante: (trem de pouso) recolhendo.

16h43:42.07 - Volta a soar na cabine o alarme de fogo.

16h43:45.16 - Primeiro oficial: Estou tentando.
Engenheiro: Estou desligando!
16h43:46.08 - Comandante: Está desligando o motor dois?
16h43:48.04 - Engenheiro: Já cortei!

O Concorde, como um pássaro ferido mortalmente, luta para permanecer no ar. Com a perda brutal de potência, a velocidade está abaixo do normal e do que é necessário para a segurança do vôo. O primeiro oficial alerta novamente.

16h43:49.22 - Primeiro oficial: Velocidade!

Segundos preciosos são gastos pelo comandante Marty, que tenta estabilizar o aparelho. O motor número um também não rende a potência necessária, e o Concorde se mantêm no ar com esforço. Checando o painel à sua frente, o enegenheiro de vôo observa mais uma vez que as luzes de indicação de trem recolhido não se acendem.

16h43:56.17- Primeiro oficial: O trem de pouso não recolhe.

16h43:58.15 - Retorna o alarme de fogo. E menos de um segundo depois, o GPWS soa pela primeira vez, indicando que o Concorde voa baixo demais, próximo demais ao solo.

16h43:59.03 - (gravação do GPWS): Whoop whoop pull up! Whoop whoop pull up!

16h44:00.17 - Primeiro oficial: Velocidade!

16h44:02.00 - (gravação do GPWS): Whoop whoop pull up!

Para quem está no solo, a visão é horrível. Voando baixo e lento demais, o Concorde deixa um rastro de fogo e de fumaça negra. Nesse momento, o motor número um falha e entra em estol, deixando de produzir a potência fundamental para manter o jato no ar. O Concorde e seus 109 ocupantes estão condenados.

No aeroporto Charles de Gaulle, os bombeiros chamam a torre de controle:

16h44:03.00 - Torre De Gaulle do serviço de bombeiros!

16h44:05.04 - Torre CDG: Serviço de bombeiros, uh, o Concorde não avisou suas intenções, tomem posição próximo das cabeceiras sul.

16h44:13.05- Torre De Gaulle do serviço de bombeiros, solicita ingresso para entrar na pista 26 direita.

Ouvindo o diálogo acima, o Primeiro oficial responde à torre e aos bombeiros, sem dar maiores detalhes, qual a intenção do comandante do AF4590:

16h44:14.15 - Primeiro oficial: Le Bourget, Le Bourget!

O primeiro oficial Marcot ainda acredita que o Concorde consiga chegar ao aeroporto de Le Bourget, situado a apenas alguns quilômetros de distância de Charles de Gaulle e, naquele momento, a meros 2 km da proa do supersônico. Mas o comandante Marty sabe que não conseguirá levar o Concorde até lá. Sua voz fica gravada, comentando num tom resignado:

16h44:16.12 - Comandante: Tarde demais.

A torre de controle dá outra instrução aos bombeiros.

16h44:18.02 - Torre CDG: Serviço de bombeiros, o Concorde vai retornar para a pista 09, na direção oposta!

O comandante Marty ouve o diálogo e comenta a informação.

16h44:19.19 - Comandante: Não dá tempo, não.

O primeiro oficial então comunica à torre de Charles de Gaulle:

16h44:22.19 - Primeiro oficial: Negativo, vamos a Le Bourget!

Bombeiros: - Torre De Gaulle do serviço de bombeiros, pode fornecer a situação do Concorde?

16.44:27.13 - Não houve tempo para responder sobre a situação do Concorde. Voando a apenas 200 nós, 100 nós a menos que o necessário para o peso que tinha naquele momento, o leme de direção perdeu sua autoridade. O Concorde não podia mais ser controlado. Sem velocidade para continuar voando, o jato estolou. O Concorde virou 180º sobre seu eixo e ficou de dorso, de costas para o solo, um pássaro abatido em pleno vôo.

A bordo da cabine de comando, a voz esgarçada do comandante Marty foi gravada em três rápidos grunhidos, entre as 16h44:29.00 e 16h44:30.18, mostrando o enorme esforço físico que ele exercia para evitar a queda. Sua respiração ofegante e o som de objetos caindo e batendo dentro da cabine de comando, ficam gravadas como os últimos sons a bordo do F-BTSC.

Eram exatamente 16h44:31.16 quando se deu o fim da gravação. Exatamente dois minutos e nove centésimos de segundo após a liberação dos freios na pista do aeroporto Charles de Gaulle, o Concorde bateu contra um terreno descampado e atingiu também o Hotelíssimo, um pequeno hotel de três andares. Com o impacto, as 95 toneladas de combustível explodiram imediatamente, ceifando numa fração de segundo a vida dos 109 ocupantes do supersônico e de mais quatro funcionários do hotel.

Voando desde 1969, este foi o primeiro acidente fatal com o Concorde. As operações com o supersônico foram imediatamente suspensas pela Air France e, dois dias depois, pela British Airways. Esse seria ao começo do fim da carreira do Concorde, pois em 16 de agosto de 2000, o certificado de aeronavegabilidade do jato foi cassado. Um programa de modificações foi iniciado, o que permitiu a volta do jato aos serviços regulares apenas em 7 de novembro de 2001. Mas então o mundo já era outro, afetado pelos atentados de 11 de setembro de 2001. As operações regulares com o Concorde foram suspensas, definitivamente, em 24 de outubro de 2003.
 
 

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