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AF 447: abrindo a caixa preta
O trágico desaparecimento do voo 447 da
Air France, ocorrido em 1º de junho de 2009, continua
assombrando o mundo da aviação. Como é possível imaginar a
queda, em pleno Oceano Atlântico, de uma aeronave moderna,
operada por uma companhia aérea de grande reputação, durante
a fase de voo mais "serena" - em cruzeiro? Ainda assim,
estes fatores somados não foram suficientes para evitar a
perda do Airbus A330 e de seus 228 ocupantes. A tragédia
teve ainda maior impacto em nosso país, pois foi do
aeroporto do Galeão / Tom Jobim que o voo 447 decolou para a
eternidade.
Nos meses seguintes, um processo intensivo de busca das
"caixas pretas" deu-se a mais de 3.000 metros de
profundidades. Somente quando os gravadores de voz e dados
foram encontrados, em abril de 2011, é que o gigantesco e
macabro quebra-cabeças começou a ser elucidado. E, ainda que
a investigação definitiva não tenha sido publicada, o
Jetsite traz agora a transcrição do conteúdo do CVR e do FDR.
A divulgação de parte do conteúdo foi feita no mês seguinte
pela BEA - Bureau d'Enquetes et d'Analyses - o órgão do
governo francês que investiga e promove a segurança no
transporte aéreo daquele país.
Um quadro ainda mais extenso acabou sendo conhecido quando
foi publicado na França um livro com a transcrição completa
do acidente: a obra, intitulada "Erreurs de Pilotage -
Volume 5", escrita pelo autor e piloto Jean-Pierre Otelli,
já leva à uma conclusão, atestada pelo próprio título do
livro. Ainda assim, é bom lembrar que acidente nenhum ocorre
por um fator isolado. O que causa uma tragédia aérea é um
sequência nefasta de ocorrências, descuidos, fatalidades.
Neste caso, o A330 penetro em um forte sistema climático,
uma tempestade tropical de notável força na região
equatorial. Os tubos pitot congelaram, o piloto automático
desligou-se, os computadores de bordo perderam a capacidade
de controlar a nave e, ao mesmo tempo, fornecer dados
confiáveis aos pilotos. Ainda assim, a obra e as
investigações, neste caso, não culpam o fabricante dos tubos
pitot, a fabricante do avião, a operadora Air France ou os
controladores de tráfego. A responsabilidade é colocada
diretamente sobre a tripulação e especificamente sobre os
ombros de um único tripulante. Certo? Errado? Tire você
mesmo suas conclusões.
Na noite de 31 de maio de 2009, o voo AF 447 deixou o
aeroporto Tom Jobim com destino a Paris as 19h29. A aeronave
era um Airbus A330-200, matrícula F-GZCP. Tinhas 18.870
horas totais e 2.644 voos (ciclos). A bordo iam 228
ocupantes, sendo 12 deles tripulantes. A primeira parte do
voo transcorreu em absoluta normalidade. Pesava ao partir
232.800 kg, ou seja, realmente no limite de seu peso máximo
de decolagem (MTOW de 233.000kg). O peso de todos os
ocupantes somados era de 17.615 kg, sendo 126 homens, 82
mulheres, sete crianças e um bebê. No peso total, 70.400 kg
eram combustível, assim calculado: 63.900kg para a viagem,
1.460 para desvios em rota, 2.200kg de reserva final,
1.900kg para alternar na chegada ao destino e 940 kg de
combustível adicional.
O jantar foi servido e retirado. Os passageiros em sua
maioria, procuraram dormir durante a parte noturna do voo,
afinal, horas depois, todos chegariam sãos e salvos à Cidade
Luz, já no período do final da manhã. Aqueles poucos que não
conseguiam dormir, assistiam a filmes nos monitores
individuais. A bordo, a cabine estava escura e a
movimentação era mínima.
A 1h36, o voo penetra na zona da tempestade tropical.
Contrariamente à todos os aviões atravessando aquela zona,
os pilotos do AF 447 não solicitaram desvio na rota, optando
por atravessar diretamente a zona de turbulência. Voando a
35.000 pés, o Airbus entra em meio às nuvens formadas na
tempestade, e começa a sacudir. A 1h51, o cockpit começa a
ser iluminado por luzes que se propagam nas janelas frontais
como descargas mágicas. O fenômeno assusta o relativamente
pouco experiente Primeiro Oficial, Pierre-Cédric Bonin, de
apenas 32 anos e 807 horas no A330, que é quem ocupa a
poltrona da direita. Pierre pergunta ao comandante Marc
Dubois: "O que é isto?"
Dubois, um veterano de 58 anos, com 10.988 horas de voo,
sendo 1.747 como comandante do A330, lhe explica que aquilo
é apenas uma aparição do famoso fogo de Santelmo, fenômeno
relativamente frequente ao se penetrar em nuvens com aquelas
características. O fenômeno nada mais é do que uma descarga
eletroluminescente provocada pela ionização do ar num forte
campo elétrico provocado pelas descargas elétricas, condição
existente nas nuvens carregadas que o AF 447 atravessava
naquele instante. Mesmo sendo chamado de fogo, é na
realidade um tipo de plasma provocado por uma enorme
diferença de potencial atmosférica.
São agora 2 horas da manhã. David Robert, outro Primeiro
Oficial, retorna à cabine de comando depois de descansar por
quase toda a primeira parte do voo. Com 37 anos de idade,
Robert é bem mais experiente que Bonin, com 6.547 horas
totais e 4.479 no A330. São 2h02 quando o comandante Dubois
deixa o cockpit para descansar. Isto ocorre de forma
regulamentar em voos longos como este, sem ferir quaiquer
regras internacionais de navegação. Dubois passa a ocupar um
dos dois leitos destinados a esta função, posicionados
imediatamente atrás do cockpit. Hora de entrar dentro do
cockpit do F-GZCP.
02h03:44 (Bonin) Bom, está aí a convergência inter-tropical.
Entramos nela, está aqui, entre 'SALPU' e 'TASIL.' Sim,
estamos bem no meio dela. (N.E.: 'SALPU' e 'TASIL' são "waypoints",
pontos imaginários criados para auxiliar na navegação.
02h05:55 (Robert) Ok, vamos chamar o pessoal lá atrás, é bom
eles saberem.
02h06:04 (Bonin) Marilyn, é o Pierre aqui da frente... Em
mais 2 minutes, vamos entrar em uma área que vai dar uma
sacudida aí, mais forte. É bom você saber e cuidar aí da
cabine.
02h06:13 (FA Marilyn) Ok, precisaremos nos sentar?
02h:06:15 (Bonin) Não seria má ideia. Avise os companheiros
aí de trás.
02h06:18 (FA Marilyn) Ok, vou avisar. Muito obrigado!
02h06:19 (Bonin) Eu aviso assim que melhorar.
02h06:20 (FA Marilyn) Ok.
Os dois primeiro oficiais discutem a temperatura externa,
mais quente do que o previsto, e que não permitiu a eles que
subissem para uma altitude maior. E comentam também que é
melhor estarem voando em um A330, pois este tem performance
superior ao A340.
02h06:50 (Bonin) Ok, vamos ligar o anti-icing system. É
melhor do que nada.
02h07:00 (Bonin) Parece que estamos no limite das nuvens,
acho que estará tudo certo.
Enquanto isto, o F/O Robert examina as condições
meteorológicas em seu radar e descobre que o mesmo não
estava configurado para a correta detecção do sistema
climático que haviam penetrado. Robert percebe que o A330
logo entraria em uma zona de intensa atividade climática e,
percebendo que um desvio seria recomendável, decide avisar
seu colega, que é quem esta pilotando o jato.
02h08:03 (Robert) Melhor curvar um pouco à esquerda.
02h08:05 (Bonin) Perdão, o que foi?
02h08:07 (Robert) Melhor curvar um pouco à esquerda. Estamos
de acordo que estamos no manual, não?
Bonin inicia a curva à esquerda. Bonin avisa que vai reduzir
a velocidade e pergunta a Robert se precisa ligar o
anti-icing nos motores. Neste momento, um alarme soa na
cabine por 2.2 segundos, indicando a desativação do piloto
automático. Os três tubos pitot, entupidos com cristais de
gelo, já não fornecem dados básicos como velocidade para os
computadores que até então controlavam o voo do Airbus. Os
pilotos teriam que voar o avião manualmente.
02h10:06 (Bonin) Tenho os controles.
02h10:07 (Robert) Okay.
Os vários acontecimentos nos últimos minutos parecem surtir
um efeito na capacidade de julgamento de Bonin. O gelo, a
descoberta do sistema de tempestade bem à frente, o fogo de
Santelmo, a troca de comando... Bonin começa a reagir de
forma irracional. Ele puxa o side stick para si e o Airbus
começa a subir abruptamente, a despeito do piloto saber que,
devido ao peso da aeronave naquele instante e à temperatura
externa mais elevada, o jato não poderia subir de forma
segura e sustentável.
O computador do jato reage a este comando inesperado e
abrupto e imediatamente soa na cabine o alarme de estol (stall
warning). Este alarme voltaria a soar 74 vezes nos minutos
seguintes. Bonin, puxando para trás o sidestick, está
efetivamente fazendo aquilo que não se deve fazer quando uma
aeronave encontra-se em estol ou no limiar de um estol:
puxar o nariz para cima. Surpreso, seu colega pergunta:
02h10:07 (Robert) O que é isto?
02h10:15 (Bonin) Não há uma boa... Não há uma boa indicação
de velocidade.
02h10:16 (Robert) Nós perdemos a... A... As velocidades,
então?
A aeronave está agora subindo a nada menos que 7.000 pés por
minute. E, ainda que ganhe altitude, ela vai perdendo
velocidade até chegar a meros 93 nós. Robert percebe o erro
de Bonin e trata de avisá-lo.
02h10:27 (Robert) Preste atenção à velocidade! Preste
atenção à velocidade!
02h10:28 (Bonin) OK, OK, vou descer!
02h10:30 (Robert) Estabilize...
02h10:31 (Bonin) Ok!
02h10:31 (Robert) Desça, desça... Tá indicando que ainda
estamos subindo, então desça!
02h10:35 (Bonin) Certo!
Com o sistema de anti-icing atuando, o aquecimento derrete o
gelo e um dos tubos pitot volta a funcionar. Os displays na
cabine voltam a fornecer informações corretas de
velocidade.
02h10:36 (Robert) Desça!
02h10:37 (Bonin) Sim, aí vamos, estamos descendo.
02h10:38 (Robert) Calma, vai devagar!
Bonin reduz a pressão no side stick, reduzindo o ângulo de
subida - mas, ainda assim, subindo. A velocidade é
recuperada e sobe para 223 nós. O alarme de stall warning se
cala. Por um momento, os pilotos parecem ter recobrado o
controle da situação.
02h10:41(Bonin) Nós estamos, é, nós ainda estamos em "climb".
De fato, Bonin ainda não abaixou ou, ao menos, nivelou o
nariz do avião. Robert resolve chamar ao cockpit o
comandante Marc Dubois.
02h10:49 (Robert) Maldição, onde está ele?
Neste ponto, o Airbus já subiu mais de 2.500 pés acima de
sua altitude quando a situação saiu da rotina. Por razões
desconhecidas, Bonin volta a puxar o side stick para si,
aumentando o ângulo de subida e colocando a aeronave
novamente em condição de estol. Soa novamente no cockpit o
alarme de estol.
O fato é que, desde o momento em que os tubos pitot se
congelaram, os computadores do Airbus saíram de seu regime
normal de atuação ("normal law" para o regime "alternate law,"
um programa que permite maior atuação dos pilotos e que
inibe os sistemas de proteção ao voo encontrados no regime
"normal law". Neste regime, os computadores de jatos Airbus
"assumem" a pilotagem e, na prática, impedem o avião de
entrar em estol. Já, quando o sistema está no regime "alternate
law", a realidade é que os pilotos podem, eventualmente,
estolar a aeronave.
É absolutamente provável que Bonin não soubesse disto e,
portanto, nunca tivesse voado no regime "alternate law".
Portanto, pode-se inferir que ele desconhecesse as
características de pilotagem em situações como esta. Pode
ser que Bonin tenha assumido que a aeronave simplesmente não
poderia estolar, pois isto é ensinado a todo piloto de
Airbus: o sistema de voo protegerá o avião de um estol. O
que talvez Bonin não soubesse eram a s diferenças de atuação
dos computadores nos regimes "normal law" e "alternate law".
02h10:55 (Robert) Maldição!
O segundo tubo pitot volta a funcionar normalmente. Os
aviônicos agora trabalham sem restrições. Os pilotos dispõem
de todas as informações necessárias para voar seguramente.
Daqui para a frente, o fator contribuinte para esta tragédia
passa a ser um só: erro humano.
02h11:03 (Bonin) Estou em TOGA, hem?
TOGA é o acrônimo para "Take Off, Go Around", ou seja,
máxima potência dos motores. Bonin, ao afirmar isto, dá a
clara indicação que está tentando aumentar a potência e
ganhar altitude, ou seja, deter a queda. O problema é que
ele voa neste momento a 37.500 pés, com o ar rarefeito e
sustentação muito menor. Os motores produzem menor potência
nesta altitude e assim, menor sustentação. Levantar o nariz,
a esta altitude, ao invés de fazer o avião ganhar altitude,
produzirá o efeito contrário se a aeronave estolar.
Ainda que a reação de Bonin pareça irracional, ela se
coaduna com o cenário de um indivíduo vivenciando um
estresse severo. Em condições assim, as partes do cérebro
que comandam a criatividade são desligadas; o indivíduo
aferra-se àquilo que já experimentou e aprendeu em seu
treinamento. Ainda que os pilotos sejam capacitados a voar
manualmente suas aeronaves, o padrão é que isto seja feito a
baixa altitude. Não é de surpreender, portanto, que, em meio
à tempestade, sem referência visuais externas, Bonin tenha
tentado voar o Airbus como se estivesse próximo ao solo,
aplicando potência máxima e puxando mais uma vez o nariz
para cima. Enquanto isto, Robert tenta chamar pelo interfone
o comandante Marc Dubois de volta ao cockpit.
02h11:06 (Robert) Diabos, ele vem ou não vem?
O Airbus agora atinge sua máxima altitude. Motores a plena
potência, nariz em ângulo de ataque de 18 graus acima do
horizonte (o mesmo ângulo empregado em uma decolagem
normal), o enorme jato voa por alguns segundos na horizontal
e então começa sua vertiginosa queda. Alarmado, Robert reage
quando o jato inicia a queda.
02h11:21 (Robert) Ainda temos potência! O que acontece neste
puteiro? Não entendo o que está acontecendo!
Diferentemente de um jato da Boeing, os side sticks nos
jatos da Airbus podem ser movidos de forma independente. "Se
um piloto no lado direito está puxando, o piloto no lado
esquerdo não sente isto em seu joystick" ensina o Dr. David
Esser, professor na escola de aviação Embry-Riddle. Desta
maneira, Robert simplesmente não tem ideia de que, a
despeito de suas ordens e das conversas trocadas, Bonin
permaneceu praticamente todo o tempo puxando para si o seu
side stick.
Os dois Primeiro Oficiais estão perdendo a batalha contra a
pilotagem do jato por não aderirem aos preceitos básicos de
algo que é ensinado a todo piloto; o conceito de CRM, ou
crew resource management. Essencialmente, eles não estão
conseguindo cooperar. Não está claro quem comanda e quem é
comandado, quem executa e quem dirige as ordens. Isto pode
ocorrer quando há dois profissionais de mesmo ranking na
cabine, seja dois comandantes ou dois Primeiro Oficiais.
Enquanto isto, Bonin segue puxando totalmente para si o side
stick. Com o nariz elevado, o Airbus despenca em meio às
nuvens, chacoalhando fortemente em função da turbulência
externa e do estol em que se encontra.
Na cabine de passageiros, a sensação deve ter sido
extremamente desagradável. A queda do avião faz com que os
ocupantes tenham a desagradável sensação de leveza provocada
pela queda. O ruído dos motores ao máximo e a trepidação
excessiva foram sentidos e certamente foram suficientes para
acordar e amedrontar todos os ocupantes. A velocidade
vertical aumenta na medida que o Airbus despenca. Se Bonin
tivesse largado os controles ou passado o comando a Robert,
o Airbus teria seu nariz abaixado e a situação ainda poderia
ser revertida. Bonin se desespera.
02h11:32 (Bonin) maldição! Perdi o controle totalmente!
Perdi o controle totalmente!
02h11:37 (Robert) Comandos à esquerda!
Finalmente, Robert, o mais sênior dos pilotos na cabine
assume a pilotagem. Infelizmente, a impressão que se tem é
que ele também não compreende que o Airbus está de fato
estolando, e instintivamente puxa para si o seu side stick.
Ainda que o nariz esteja apontado para cima, o Airbus
despenca a um ângulo de 40 graus em relação ao horizonte. O
barulho ensurdecedor do alarme de "stall warning" continua a
soar. Bonin, depois de uma breve pausa, volta a puxar o side
stick para si. Neste momento, transcorridos apenas 91
segundos do início da crise, o comandante Dubois retorna à
cabine, perplexo.
02h11:43 (Dubois) Eeee! Que diabos vocês estão fazendo?
02h11:45 (Bonin) Nós perdemos o controle do avião!
02h11:47 (Robert) Nós perdemos totalmente o controle do
avião! Não entendo nada o que está acontecendo! Tentamos de
tudo!
02h11:52 - (Dubois) Então peguem os comandos logo!
Neste momento, o Airbus passa pela marca de 35.000 pés com
apenas 100 nós de velocidade horizontal, nariz para cima em
15 graus e descendo a mais de 10.000 pés por minuto, em
ângulo de 41.5 graus - uma atitude que seria mantida, com
pequenas variações, até o impacto com o oceano. E ainda que
os tubos pitot estejam agora perfeitamente funcionais, a
velocidade horizontal é tão baixa - agora abaixo de 60 nós -
que as indicações de ângulo de ataque são consideradas
inválidas. O alarme de estol silencia-se, contribuindo para
a impressão dos pilotos que, de fato, os computadores do
avião estão fornecendo indicações espúrias e, que, portanto,
o avião não estaria mesmo estiolando - quando de fato está.
E como.
O comandante Dubois opta por ficar na poltrona central, de
observador. Ele não tenta ocupar sua poltrona na esquerda,
talvez pela dificuldade de se locomover enquanto o jato
despenca rumo ao mar. Não lhe ocorre perguntar quem está
comandando o voo. Dubois tenta apenas compreender o que
teria levado o Airbus a se comportar assim, sem questionar
ou ordenar o básico: que um dos pilotos efetivamente "voe" o
avião.
02h12:14 (Robert) O que você acha? O que você acha? O que
devemos fazer?
02h12:15 (Dubois) Bem, eu não sei! Está descendo!
Volta a soar o alarme de estol, mas nenhum dos pilotos
comenta sobre isto. Eles passam a discutir qual seria a
origem da perda de controle. Dubois ordena a Bonin que
mantenha as asas niveladas. E os três passam a discutir
abertamente se o avião estaria de fato caindo ou subindo,
ainda que os instrumentos mostrasse isto claramente. Ao se
aproximar da altitude de 10.000 pés, Robert tenta retomar o
comando e empurra o seu side stick para a frente, tentando
abaixar o nariz do jato. Mas, como Bonin permanece puxando
para si o side stick no lado direito, o avião entra na
situação de "comando duplo" (dual input). O sistema de
computadores obedece os comandos de Bonin, mantendo o nariz
elevado e o Airbus em queda livre.
02h12:26 (Robert) A velocidade?
02h12:27 (Robert) Você está subindo. Você está caindo,
caindo, caindo!
02h12:30 (Bonin) Mas eu estou caindo?
02h12:42 (Bonin) Quanto subimos?
02h12:44 (Dubois) Não é possível!
02h12:45 (Robert) Como está a altitude?
02h12:52 (Bonin) Estamos caindo ou não?
02h13:01 (Robert) Agora você está caindo!
02h13:04 (Dubois) Coloque as asas na horizontal!
02h13:07 (Bonin) É o que estou tentando fazer!
02h13:09 (Dubois) Coloque as asas na horizontal!
02h13:25 (Bonin) O que está havendo... Por que nós
continuamos caindo?
02h13:32 (Bonin) Vamos passar pela marca de 10 mil pés!
02h13:36 (Bonin) Nove mil pés!
02h13:40 (Robert) Suba! Suba! Suba! Suba!
02h13:40 (Bonin) Mas eu estou com o side stick puxado o
tempo todo!
Finalmente, Bonin conta aos colegas o fator crucial que
selaria a sorte de todos a bordo. Neste momento, intervêm a
experiência do comandante Dubois.
02h13:42 (Dubois) Não, não, não... Não suba! Não, não!
02h13:43 (Robert) Então desça! Me passe os controles! Me
passe os controles!
Bonin finalmente cede os controles e Robert finalmente
abaixo o nariz da aeronave. O jato começa a ganhar
velocidade horizontal, mas ainda mergulha rumo ao mar à
razão de 10.000 pés por minuto. Ao chegar a apenas 2.000 pés
sobre a superfície do oceano, um novo alarme soa na cabine:
é o GPWS, Ground Proximity Warning System, que indica que o
Airbus aproxima-se perigosamente do oceano. Não há mais
chance de recuperação para o voo 447. Por incrível que possa
parecer, Bonin mais uma vez agarra seu side stick e mais uma
vez o puxa completamente para si, colocando novamente o
Airbus na situação de "comando duplo" (dual input).
02h14:05 (Dubois) Atenção, você está subindo!
02h14:07 (Robert) Estou subindo?
02h14:07 (Bonin) É o que nós devemos fazer, estamos a 4 mil
pés!
02h14:18 (Dubois) Então puxe!
02h14:21 (Bonin) Puxa, puxa, puxa, puxa!
02h14:23 (Robert) Maldição, nós vamos cair! Não posso
acreditar nisso!
02h14:25 (Bonin) O que está acontecendo?
02h14:27 (Dubois) Dez graus de elevação!
Exatamente 1.4 segundos depois, o cockpit voice recorder
pára de funcionar. Os ocupantes do voo 447 têm morte
instantânea quando o enorme A330 colide violentamente contra
o Oceano Atlântico. No momento do impacto, a razão de
descida era de 10,912 pés por minuto; a velocidade
horizontal era de apenas 107 nós, a atitude era de 16.2
graus "nose-up", a asa esquerda estava 5.3 graus abaixo da
linha do horizonte e a proa era de 270 graus.
Depois de transcritas a caixa preta e analisado o FDR, de
posse dos primeiros dados enviados ainda naquela fatídica
noite, a aviação mundial nunca mais seria a mesma. Muitas
lições foram dolorosamente aprendidas com a tragédia do Air
France 447. Pilotos comerciais em todo o mundo deverão agir
de forma diferente quando confrontados com um alarme de
estol em alta altitude. Companhias aéreas vão modificar seus
treinamentos, incluindo alguns dos ensinamentos aprendidos
neste caso. Entre os quais, é bom destacar: atenção total às
condições climáticas e ao uso do radar; melhoria nos
procedimentos de CRM, sobretudo quando houver apenas dois
Primeiro-Oficiais no cockpit; maior compreensão e
disseminação do que ocorre quando um jato da Airbus passa a
ser operado em regime de alternate law; praticar as técnicas
de pilotagem manual em voo de cruzeiro.
Este acidente também explicita uma tendência crescente: a
crescente "fé" dos aeronautas na capacidade "infalível" de
suas máquinas, cada vez mais automatizadas. Ainda que
centenas de acidentes tenham de fato sido evitados, nos
últimos anos, pela incrível capacidade de automação dos
aviões comerciais, é preciso lembrar que é o último e
preponderante elemento na cadeia de segurança: o homem.
É fácil criticar a atuação dos aeronautas da Air France do
conforto de uma poltrona, na cama de seu lar. Mas quem seria
capaz de se colocar na posição de infalível" quando
confrontado com a mesma situação experimentada pela
tripulação do AF447: uma tempestade em uma noite escura, 12
km acima do oceano, com indicações espúrias nos instrumentos
- afirmar: "eu teria me salvado".
Quem poderia atirar a primeira pedra, se a companhia seguiu
todos os procedimentos mundialmente aprovados? Operar voos
longos como este com tripulação composta (1 comandante e 2
Primeiro-Oficiais) é de fato procedimento legal, ainda que
muitas empresas optem por tripulação de revezamento (2
comandantes e 2 Primeiro-Oficiais) em jornadas comparáveis.
Em retrospecto, é fácil pensar: e se ao menos um comandante
estivesse sempre aos controles? Talvez a inexperiência de
Bonin não se mostrasse catastrófica. Certamente a decisão de
não desviar da tempestade, contrariamente ao que fizeram
todos os outros aviões que por ela passaram naquela noite,
tenha sido o fator que precipitou a cadeia de eventos que
levou o AF 447 ao seu túmulo sob as ondas. Mas ainda assim,
ele poderia ter sido salvo nos minutos seguintes. Aí, entra
um componente que não está escrito em manual algum. Entrou,
de forma definitiva, a mão pesada e invisível do destino.
© Jetsite 2012 / Gianfranco Beting