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Electra II
Saudade, paixão, amor são sentimentos únicos à raça
humana. Seria possível imaginar que uma máquina pudesse
despertar tais emoções? Se você acha que não, é porquê
você não conheceu o Electra.
O Electra não foi apenas um avião comercial, de história
fascinante e dramática. Foi um mito que uniu as duas
maiores cidades do país, em sua época de ouro. Foi o
elo, a linha vital, a Ponte Aérea que ligou Rio à São
Paulo.
Substituído definitivamente em 7 de janeiro de 1992
pelos Boeing 737, o Electra escreveu a mais memorável
página de serviços prestados à nossa aviação.
Sim, o DC-3 foi até mais importante que o Electra,
desbravando nosso gigantesco país, descendo em pistas de
terra, em clareiras, enfim, onde mais nenhum avião
conseguiu operar.
Mas o Electra esteve na nossa mais importante rota,
exclusivamente, por 17 anos. E, em seus 29 anos de
carreira no Brasil, não arranhou nenhum de seus
passageiros ou tripulantes. Foi, portanto o mais seguro
e confiável avião a voar pelos céus do Brasil.
Mas foi justamente sua longevidade, aliada às suas
qualidades intrínsecas, que fizeram do Electra nosso
tipo inesquecível. Numa era de jatos velozes, seguros,
mas desconfortáveis em suas poltronas do meio, em
fileiras cada vez mais apertadas, o Electra reinou
soberano com suas largas poltronas, janelas colossais, e
voando à 5000 metros em altitude de cruzeiro, permitindo
aos passageiros se maravilhar em um dos percursos mais
fotogênicos do mundo, entre Rio e São Paulo.
Isso sem falar no "Lounge", uma saletinha na parte final
da cabine de passageiros, com 7 poltronas voltadas para
o eixo longitudinal da aeronave, formando uma espécie de
clube nos fundos. Sim, balançava mais que o restante da
aeronave. Mas, em compensação, era mais silencioso.
Promessa e tragédia
Projetado pela Lockheed em Burbank, Califórnia, o modelo
L-188 fez seu primeiro vôo em 6/12/57. Encomendado
inicialmente pela American Airlines e pela Eastern, o
Electra vendeu rapidamente mais de 100 unidades. Parecia
um sucesso garantido para a empresa fabricante dos
elegantes Constellation.
Devido à uma greve de pilotos na American, coube à
Eastern realizar o vôo inaugural em 12/1/59.
A primeira viagem da American ocorreu somente em
23/1/59. Mas, exatamente 11 dias depois, as 23:58, o
N6101A, primeiro Electra entregue à American, mergulhou
nas águas geladas do East River, na aproximação final
para o aeroporto de La Guardia, Nova York. Um triste
recorde: foi a aeronave mais precocemente acidentada em
relação à entrada em operação.
A investigação subsequente exonerou de culpa o Electra,
esta recaiu sobre a tripulação, que sem a experiência
necessária no novo modelo, equipado com um novo tipo de
altímetro, teria descido demais, até bater. Mesmo com
sua imagem arranhada, o Electra seguiu voando.
Na noite de 29 de setembro do mesmo ano, o Electra de
matrícula N9705C, pertencente à Braniff International,
despedaçou-se em pleno ar. Sem nenhum aviso de Mayday,
qualquer indicação de problemas, nada. Ficou constatado
que em seu mergulho final, o Electra rompeu a barreira
do som. Uma das asas, porém, foi encontrada à
quilometros de distância.
Foi o que bastou para a opinião pública americana. A
frota de Electras foi interditada até que se encontrasse
um culpado. Meses de investigação não levaram à
conclusão nenhuma, mas descobriram que a asa esquerda
desprendeu-se em pleno vôo.
Os Electras retornaram ao serviço, mas como medida
preventiva, tiveram sua velocidade de cruzeiro limitada,
o que tornava-os tão lentos quanto as aeronaves à pistão
que eles haviam substituído.
Mesmo com estas restrições, o Electra seguiu sua
carreira. Mas na tarde ensolarada de 17 de março de
1960, o N121US, o primeiro Electra entregue à Northwest,
decolou de Chicago rumo a Miami, onde nunca chegou. Um
piloto de caça da Força Aérea realizava vôos de
treinamento, quando no céu azul, alguns quilômetros à
sua frente, viu um, depois dois flocos de fumaça branca.
Do segundo, partiu um horrível rastro de fumaça negra,
que descreveu um arco que terminou numa pastagem. Era a
assinatura do atestado de óbito dos 57 passageiros e 6
tripulantes. Nenhuma mensagem, nenhum sinal de perigo.
Mergulhou no solo com tal força, que sua fuselagem abriu
uma cratera de 4 metros de profundidade, literalmente
pulverizando todos os seus ocupantes.
Dos 63 corpos, foram recuperados pedaços, que, se fossem
colocados juntos, não conseguiriam formar mais do que
sete cadáveres. A cena era tão horrível, que um capelão
da Força Aérea exclamou: "em nome da humanidade, marquem
o local para evitar dissecração e deixem essas pobres
almas aí mesmo". O horror deste acidente em Tell City,
Indiana, contagiou todo o país. Congressistas pediram a
interdição definitiva. Clientes cancelaram encomendas.
Em outras palavras: o Electra morreu nesta data.
Os jatos terminam com o Electra
A entrada em serviço dos jatos, a partir de 1959, foi,
em última análise, a pá de cal no projeto. A American,
que havia encomendado 30 unidades, começou a retirá-los
de serviço, colocando-os imediatamente à venda. O
público simplesmente desistia de voar se a aeronave
fosse Electra.
A Lockheed iniciou uma profunda investigação para
descobrir as causas. Meses depois, o fenômeno batizado
de "whirl mode" foi apontado como culpado. Em resumo,
uma fraqueza estrutural no suporte dos motores
transmitia vibração às naceles e destas, a vibração era
passada à asa, que devolvia a vibração à nacele e esta
aos suportes, assim sucessivamente. Quando a freqüência
de vibração entrava em ressonância, em menos de três
segundos a asa se desprendia da fuselagem. Descoberta a
causa, a Lockheed modificou todas as aeronaves, arcando
com milhões de dólares de prejuízos. Mas já era tarde
demais. Apenas 160 foram produzido até 1961.
Chegando no Brasil
E foi justamente um lote de Electras colocados à venda
pela American que chamou a atenção de Linneu Gomes,
presidente da Real Aerovias. Em 1961 ele encomendou para
a sua empresa 5 Electras, que nem chegaram a ser
entregues, pois a Real foi absorvida pela Varig. Em
setembro de 1961, o presidente da Varig, Rubem Berta,
convocou Omar Fontana, então associado (através da Real)
ao grupo Varig, para tentar desfazer a compra junto à
American. Omar foi aos Estados Unidos com a missão de
cancelar a vinda dos Electra para a Varig. Para sorte da
empresa gaúcha, Omar falhou em sua missão.
E assim, em 9 de setembro de 1962, o comandante Heinz
Plato toca em território brasileiro com as rodas do
PP-VJM, vindo desde Tulsa até Porto Alegre.
O Electra então converteu-se no melhor avião da Varig
para as rotas domésticas e sul-americanas. Operou até os
"Vôos da Amizade", entre Recife e Lisboa, atravessando
com facilidade o Atlântico. Foi somente com a chegada
dos 727-100 em 1970, que o Electra perdeu a primazia nas
rotas nacionais.
Outro Electra foi registrado no Brasil: o PT-DZK,
operado entre 1971 e 1976 como aeronave executiva do
empresário Baby Pignatari, sem dúvida, um homem de muito
bom gosto. Pelo menos, para escolher aviões.
Rei da Ponte
Em 1975, o DAC decidiu que o pool de empresas que
operava a Ponte Aérea deveria utilizar apenas
quadrimotores, efetivamente alijando da rota os Dart
Herald, FH-227 Hirondelle e YS-11 Samurai. Assim ficaram
apenas os Viscount da Vasp (por pouco tempo) e Electras
da Varig.
Foi aqui que eles mais brilharam, reinando absolutos nas
duas décadas seguintes, fazendo até 88 vôos diários. A
frota cresceu para enfrentar a demanda: em 1978 vieram
mais dois (VLX e VLY) e em 1986 os dois últimos
exemplares (VNJ e VNK).
Começaram a falar em aposentá-los, mas Hélio Smidt,
presidente da Varig e apaixonado pelo avião, nem quis
saber. Sua paixão pelo tipo levou a uma bela homenagem,
quando de seu falecimento: Smidt morreu em Nova York, no
ano de 1990. Seu corpo foi trazido ao Brasil num 747 da
empresa. E como homenagem, a varig teve a delicadeza de
fazê-lo voar uma última vez e seu avião predileto: o
Electra PP-VLC levou seu corpo no curto vôo entre
Guarulhos e Congonhas. Em seguida, durante seu enterro,
uma formação de Electras sobrevoou o cemitério, tornando
sua despedida ainda mais emocionante.
O Electra perdeu seu protetor. Com a morte de Smidt e
com as crescentes pressões da Vasp para colocar os
737-300 na rota, em 1991 a inevitável decisão foi
tomada: sai Electra, entra jato.
Em 11 de novembro, os 737-300 de prefixos PP-SOL ,
PP-VOS e PP-VOT iniciaram a aposentadoria dos Electra no
Brasil. O primeiro a sair de operação foi o PP-VJO. Em
26 de novembro, a Transbrasil colocou o PT-TEH na pointe
Aérea, no lugar de mais um Electra.
Hora do adeus
No domingo 5 de janeiro de 1992, o PP-VJN transportou os
últimos passageiros pagantes.
No dia seguinte, 6 de janeiro a Varig convidou
passageiros freqüentes e personalidades para vôos de
despedida, utilizando-se do PP-VJO e PP-VJN. Os
comandantes Sergio Lott e Pedro Goldstein pilotaram os
vôos. As redes de TV marcaram a data, os jornais
dedicaram páginas ao adeus. Ao final da manhã, o PP-VJN
fez algumas passagens rasantes após o último vôo,
arrancando aplausos e muitas lágrimas de todos os
presentes. Finalmente, pousou e foi taxiando para os
hangares da Varig em Congonhas.
Cortou os motores, e com os hélices parando, foi
deixando partir uma época que não volta mais. Tempos em
que o Brasil tinha o melhor futebol e a Bossa Nova, a
melhor música do mundo. Tempo em que se podia viajar com
conforto, sentar e ver a restinga da Marambaia, o
Corcovado e o Pão de Açucar a passarem na janela de um
Electra. Tempo que não volta, como não voltam mais os
Electras.
A saudade mata a gente
Após 6 de janeiro, os Electra foram colocados à venda.
Menos um, o PP-VJM, que, preservado pela Varig, descansa
no museu do Campo dos Afonsos. Seus irmãos tiveram menos
sorte. Foram vendidos para à Blue Airlines, New ACS e
Filair, todas do antigo Zaire, onde literalmente foram
condenados à morte. Sem qualquer tipo de manutenção,
foram voados até acabar ou cair. Um deles protagonizou
uma tragédia impressionante: mais de 140 passageiros,
muito acima do máximo permitido de 90 ocupantes,
pereceram quando o ex- PP-VLA caiu após decolar de
Kinshasa. Apenas dois sobrevivem: O ex- PP-VNK, voando
no Canadá e o PP-VJW, à venda e encostado em Lanseria,
África do Sul. Dos 169 Electras construídos, apenas 23
ainda operam em vôos de combate à incêndios ou mais
comumente, no transporte de carga.
Samba do Avião
É, o Electra é meu tipo inesquecível. Mas talvez o
momento mais mágico de sua longa e brilhante carreira
seja aquele em 1991, durante um show de Tom Jobim no
aterro do Flamengo. Nosso músico maior, sabidamente
apaixonado por tudo que voava, iniciava os primeiros
acordes de "Samba do Avião" (Minha alma canta, vejo o
Rio de Janeiro, estou morrendo de saudade, Rio seu mar,
praias sem fim, Rio você que foi feito pra mim...),
quando um Electra, em aproximação para o Santos Dumont,
passou baixinho, sobrevoando o show. Tom parou um
instante, olhou para cima, e nessa hora, como por magia,
o Comandante piscou as luzes de pouso, saudando o
maestro e seu público. Foi o adeus de Jobim ao Electra,
o adeus do Electra ao Jobim, e para mim, o início de uma
saudade (dos dois) que não tem mais fim.
(Gianfranco Beting)